terça-feira, 12 de julho de 2016

O dia ao contrário




O dia começou como sempre às 6.30 da manhã, o despertador do telemóvel não falha, desgraçado.
Como de costume, entro em piloto automático, coisa que agora tenho a certeza é uma capacidade exclusiva das mulheres.
Tinha um monte de coisas para fazer, para variar. Despachar as crianças para a escola, apanhar os transportes para o trabalho (sim, vários transportes), sair antes de almoço para ir a uma consulta ao hospital, voltar para o trabalho, mas antes almoçar qualquer coisa pelo caminho, sair mais cedo para ir á reunião da escola do pequeno, depois sair directo para a natação da miúda e pelo caminho passar pelo pão. Regressar a casa depois das oito da noite, para dar banhos, ajudar nos trabalhos da escola, tratar do jantar e reencaminhá-los para a cama… há!! É verdade, a roupa, ainda existe um cesto de roupa á espera para se lavar e outro para arrumar…
Canseira só de pensar nisto tudo enquanto estou no banho. Sim, sim, enquanto se toma banho, faz-se uma revisão mental á agenda do dia.
Saio de casa já a correr para apanhar o comboio e ao chegar á estação dou de caras com um cenário surreal, pessoas a correr desnorteadas por todo o lado, crianças a chorar e a gritar pelas mães. Fiquei imobilizada, ainda a tentar assimilar tudo aquilo.
Fui andando devagar e tentei chegar a uma das bilheteiras, na esperança de perceber o que se passava, havia fumo no ar e cheiro a pólvora seca, estremeci ao ver bem á minha frente um homem armado, empunhava uma arma que percebi logo era bem real, percebi que me olhou mas tentei desviar o olhar e sair dali.
O meu coração parecia que me saltava da boca, só repetia a mim mesma, “ tens de sair daqui”.
Virei costas e desatei também eu a correr, desnorteada como todas as outras pessoas, o instinto de defesa é um denominador comum a todos nós.
Não sei quem eram aquelas pessoas armadas, nem o seu propósito mas escolheram muito mal o dia, eu tinha tanta coisa para fazer, estava toda arranjadinha e o pior, estava de saltos altos (dá sempre um ar mais apresentável quando se tem reuniões e quer se queira quer não a nossa sociedade ainda vive de aparências).
No meio da correria esbarrei com um senhor e estatelei-me no chão, azar dos azares, fiquei aos pés de um dos fulanos que estava armado. Gelei.
 Pela primeira vez na vida fiquei sem reacção alguma, só pensava: O que me queriam! mas o melhor seria cooperar.
Fui agarrada por uma mão enorme, que sem grande esforço me colocou em pé, sem conseguir pensar, fui arrastada por esse indivíduo das mãos grandes, parecia-me estrangeiro, russo talvez.
Numa questão de minutos que a mim me pareceram eternidades, levaram-me para fora da estação por uma porta das traseiras e nessa altura já eu tinha perdido os sapatos pelo caminho e trazia a minha mala a arrastar o chão.
Deparei-me com outras mulheres todas com o mesmo ar de terror espelhado no olhar, eu deveria estar igual, pensei.
Comecei a aperceber-me que deveríamos ter sido escolhidas, o padrão era o mesmo, só mulheres caucasianas, entre os 20 e os 35 anos talvez, jovens e saudáveis e isso gerou em mim um pânico difícil de explicar. Todo o meu corpo tremia, não sabia o que pensavam as outras mas eu acabara de ganhar consciência do que aquilo significava, estávamos a ser raptadas, só podia ser para tráfico.

Enquanto eu me perdia nestes pensamentos, já estava enfiada numa carrinha, vendaram-me os olhos, retiraram-me a mala e senti o barulho do motor, nesse instante, sentada no chão, no escuro, chorei compulsivamente, pensava não no meu destino, mas no dos meus filhos, o que seria deles sem mim.
Imaginava aqueles pequenos a perguntar pela mãe, vezes sem conta e á medida que o tempo ia passando naquela carrinha, também ia serenando o meu coração.
Só tinha de tentar ser racional, não sabia para onde ia, mas tinha de haver uma maneira de conseguir fugir, era isso, a solução seria, fugir.
Já tinha um objectivo agora só tinha de o colocar em prática mal a carrinha parasse e nos abrissem aquelas malfadadas portas.
Tinha perdido a noção do tempo, de quando em vez ainda ouvia o soluçar das outras mulheres mas nenhuma de nós se atrevia a falar.
Sentia fome, e começava a doer-me a cabeça, - Eu e a minha mania de sair de casa sem tomar o pequeno- almoço, dá nisto.
Não tive tempo de pensar em comida, a carrinha imobilizou-se e comecei a ouvir vozes, falavam russo, não tinha dúvidas.
Senti um calafrio no peito, tinha de arranjar maneira de fugir. A porta da carrinha abriu-se e já vários homens nos puxavam para fora aos tropeções.
Senti o sol de Outono a aquecer-me a face e percebi que a viagem devia ter demorado umas horas, o sol já ia alto.
Sem grandes demoras, respirei fundo e virei-me para um dos homens, soletrei bem devagar:
 - Water, I need water, please??
Achei que não iriam entender português, mas também não tive nenhuma resposta da parte dele, lembro-me de pensar – Este deve ser daqueles, tipo calhau com olhos.
Mas não podia desistir, continuava vendada e estavam a levar-me para algum sítio, tropecei em algumas pedras por isso devia estar a ir para algum sítio mais isolado.
Insisti com o calhau com olhos, o tal das mãos grandes que me continuavam a agarrar:

- Pleeeeaaassseee!!! I need water and I need a bathroom.

Nada, deu-me um puxão ao braço com tal força que gemi de dor e continuámos o caminho.
- Raios!!! São mesmo russos, estou feita. As lágrimas voltaram a visitar a minha face, mas depois o meu coração fez –me ver os meus filhos, respirei fundo outra vez, e outra vez e fiz nova investida.
Fiquei inerte, os pés sujos e doridos de andar, presos ao chão, ele voltou a puxar-me o braço, mas aí eu já estava preparada, rangi os dentes e disse, desta vez em português, mais alto e com a voz mais firme que consegui fazer:
- Eu preciso de uma casa de banho, ou me levam a uma ou vou fazer aqui!!! Posso??
Fiz o gesto de me baixar, como se me fosse sentar na sanita, e desta vez fui eu que dei um puxão no calhau com olhos, obrigando-o a baixar também.
Ficámos parados, e voltei a ouvi-los falar, apesar de não perceber nada, o facto de termos parado já era um bom sinal, pensei para os meus botões.
Voltámos a andar e senti que virámos á direita, fizeram-me entrar num sítio, devia ser antigo pois ouvi uma porta a ranger, de seguida subimos umas escadas e de repente, tiraram-me a venda e desataram-me as mãos.
Os meus olhos piscaram, com a luz ténue que recebiam, pobrezitos, estavam há muito tempo na penumbra.
O primeiro impacto foi brutal, estávamos todos numa sala, com duas janelas com portadas de madeira velha, já sem vidros, não existia mobiliário algum e o chão de madeira já carcomida pelo tempo, indiciavam que estava num prédio abandonado.
-Oh meu Deus! Onde é que eu estou. Senti o pânico de novo a tomar conta de mim, as outras estavam igualmente estarrecidas, conseguia perceber isso pelo seu olhar.
-Não! Não! E Não! Vamos lá manter a calma Margarida., pensa nos teus filhos, tens de voltar para eles.
Eram a minha constante motivação, às vezes pensava se todas aquelas mulheres também teriam uma motivação assim tão grandiosa para conseguirem fugir daquele destino.
Os meus olhos, ainda estremunhados, como se tivessem acabado de acordar, passearam-se pela sala, vi uma porta aberta ao fundo e tínhamos quatro carrascos de arma em punho e de caras destapadas a olhar para nós.
Um deles apontou com a arma para a dita porta, que estava escancarada. Fui das primeiras a avançar, aquilo era a luz verde que eu precisava.
Eles começaram a empurrar as outras mulheres para me seguirem, denotei que deviam estar com pressa, o que só podia indicar que aquilo era um ponto de passagem.
Mal me aproximei da porta, o cheiro nauseabundo quase que me fez vomitar, nem sei se chamaria aquilo de casa de banho.

Entrámos todas a monte, empurradas pelas armas dos homens, algumas começaram a aliviar a bexiga sem se preocuparem em encontrar a sanita, eu fiquei mais preocupada em verificar se aquele cubículo mal cheiroso teria alguma janela que desse para a rua.
Havia de facto um janelo pequeno por onde entrava o sol envergonhado e uma ligeira brisa, era aquela a brisa da liberdade, pensei.
No meio da confusão de mulheres a tentarem fazer as suas necessidades, achei que se eu tentasse pular o velho autoclismo e saísse pelo janelo, eles não dariam logo por minha falta, tinha de tentar.
Passei por entre as outras e elas que me perdoem, mas aqui era mesmo o salve-se quem puder, e alcancei o janelo.
Assim que coloquei a cabeça de fora, percebi o burburinho que tinha gerado entre as outras mulheres e percebi que não tinha muito tempo até eles perceberem que algo se passava.
Aquela janela pequenina, mas que para mim significava voltar á vida, dava para a escada de incendio, talvez eles não conhecessem o prédio e só fizeram aquela paragem para me sossegar, e ainda bem, neste caso tinha de aproveitar os erros dos outros.
Estava num segundo andar, corri pelas escadas de incêndio sem olhar para trás, estas abanavam e senti que podiam cair a qualquer instante, mas como estava descalça também não fazia barulho, pelo que era uma vantagem e alcancei o chão num ápice.
Corri, corri sem direcção, sem norte, apenas uma coisa latejava na minha cabeça, ir para bem longe, sair dali.
Parei quando me deparei com uma avenida grande e movimentada, já não tinha mais fôlego, sentia-me a desfalecer, sem forças, mas ainda assim, alerta.
Olhei para todos os lados, qual animal a fugir do seu caçador, não vislumbrei nem carrinha nem homens armados.
Nesse instante deixei-me cair no passeio, encostei-me a uma parede e chorei como uma criança, tinha conseguido fugir daquele inferno, podia voltar para casa, para a minha família e as minhas crias.
Depois percebi que não sabia sequer onde estava, não conhecia aquele sítio, as pessoas passavam apressadas e nem reparavam em mim.
Triste realidade aquela em que me encontrava, descalça, suja, sem mala, sem dinheiro, sem telemóvel, como iria sair dali.
Quase sem forças para me levantar, os pés doridos, o estômago colado ás costas, olhei para mim, como era possível, tinha-me transformado numa sem abrigo, era invisível a quem passava.
Respirei fundo, engoli em seco, a boca áspera ansiava por umas gotas de água, mas primeiro tinha de perceber onde estava, pensei, depois as necessidades alimentares e fisiológicas.
Começei a olhar as placas e li numa delas, “Torre dos clérigos”, fiquei de boca aberta, estava no centro do Porto.
Pensei em levantar-me mas as minhas pernas não acompanhavam os meus pensamentos, não tinha forças.
Passaram por mim uns miúdos a comer hambúrgueres e até me veio água á boca, já deviam ser mais do que horas de almoço.
Tinha de me fazer á vida, não podia ficar ali sentada á espera que me encontrassem. Perdi a vergonha e perguntei a um senhor que passava que horas eram, a resposta veio seca e sem sequer parar, “ são 13.30”.
O meu estômago tinha razão, eram mais que horas de comer, como iria conseguir isso se não tinha dinheiro?
Estendi a mão, baixei a cabeça com vergonha, e deixei-me ficar ali, não tardou muito caíram as primeiras moedas, mas tive de esperar muito tempo para conseguir dois euros.
Levantei-me a custo ajudada pela parede que me suportou aquele tempo todo e comecei a andar, a zona parecia antiga e pensei que talvez fosse fácil encontrar uma fonte onde pudesse matar a sede, mas nada, definitivamente, hoje não era o meu dia.
Resolvi interpelar uma rapariga que vinha com o namorado e perguntei se sabia onde havia uma fonte para eu poder beber água pois não tinha dinheiro para comprar (achei que não valia de nada eu tentar contar a minha história, pois era tão bizarra que ninguém acreditaria).
Eles olharam-me de alto abaixo e afastaram-se de mim, como se eu lhes fosse pegar alguma coisa e depois ela foi com a mão ao bolso das calças e deu-me uma moeda e seguiram caminho rapidamente.
Bem, achei melhor tentar comprar uma garrafa de água e alguma coisa para comer, entrei no primeiro café de esquina que encontrei e assim que cheguei ao balcão o empregado disse-me:
- A senhora não pode estar aqui, pedir é na rua.
Acho que só nessa altura é que tomei consciência da situação em que me encontrava.
Um mendigo, sem abrigo, que toda a gente quer ver bem longe da sua porta.
Olhei o senhor nos olhos e disse:
- Desculpe, eu tenho dinheiro e ainda não cheiro assim tão mal, acha que posso fazer o meu pedido?
O empregado limitou-se a perguntar o que queria e pediu-me o dinheiro. Pedi um café, um bolo e uma garrafa de água das pequenas.
Serviu-me as coisas ao balcão, deu-me vinte cêntimos de troco e disse “Passe bem”.
Entendi que se não queria chatices o melhor seria comer na rua mas ainda me atrevi a perguntar se podia ir á casa de banho.
Ele lançou-me um olhar reprovador mas perante o olhar dos outros clientes lá acedeu.

Ganhei outro alento, depois de fazer a vontade á minha bexiga e satisfazer o meu estômago, ainda guardei o pacote de açúcar no bolso das minhas calças (agora mais brancas que pretas), não sabia quando ia voltar a conseguir comer e um pacote de açúcar podia dar muito jeito.
Posto isto, tinha de puxar pela cabeça e tentar sair dali, tinha de regressar a Lisboa. Mas como ia conseguir dinheiro para comprar bilhete? Só se conseguisse ligar a alguém, mas sem telefone fica difícil.
Deambulei pelas ruas do Porto, pensei o que se estaria a passar com aquelas raparigas que foram apanhadas como eu mas que ficaram para trás. Vi uma esquadra de polícia e achei que podia tentar ir explicar o que me aconteceu, era isso, eles iam ajudar-me a voltar.
O meu rosto iluminou-se como se tivesse ganho a lotaria.
Entrei na esquadra da PSP e dei de caras com um senhor barrigudo e de bigode a ler um jornal do outro lado de um guichê.
- Olhe? Desculpe, boa tarde, pode ajudar-me?
- O senhor pousou o jornal, levantou os olhos para mim e dirigiu-se ao guichê.
Esticou o pescoço para me mirar e resmungou:
- O que queres daqui?
- Eu não sou daqui, sou de Lisboa e preciso de voltar, esta manhã quando ia para apanhar o comboio fui raptada por um grupo de homens e trouxeram-me para aqui mas eu consegui fugir, só que não tenho dinheiro, nem telefone para voltar.
A pergunta seguinte saiu seca:
- Documentos?
- Ouça, não tenho nada, eles ficaram com a minha mala! Insisti mas já sem esperança.
Riu-se ma minha cara, voltou a sentar-se e disse-me para eu desandar dali.
Olhei o relógio velho pregado na parede, marcava quatro da tarde.
Saí de cabeça baixa, os pés a arrastarem-se pela rua, se nem a polícia acreditava em mim, como é que eu ia conseguir chegar a casa.
Ah! Como eu precisava de um abraço do meu marido e dos meus filhos.
A noite não tardava aí e como iria passar a noite numa cidade que não conheço e na rua, impossível de imaginar, nem nos meus piores pesadelos.
De repente vi a placa a indicar os comboios,- É isso! Pensei, vou apanhar o comboio para Lisboa, tenho de conseguir, dê por onde der.
Pus-me a caminho, fui seguindo as placas, já sem me importar com o olhar desconfiado dos transeuntes.
Finalmente a estação, parecia uma miragem, comecei a deambular pelas várias linhas e descobri que o próximo comboio com rumo à capital partia dali a meia hora.
Significava que tinha meia hora para conseguir o abençoado bilhete.
Ainda pensei tentar entrar sem bilhete, mas corria o risco de ser apanhada e depois acabava por perder o comboio. Não dava, teria de conseguir o dinheiro. Mas como?
Entrei na casa de banho da estação e deparei-me com uma mãe atarefada com dois pequenos enfiados na casinha de banho.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas - os meus filhos! estava com tantas saudades deles, senti o meu coração apertadinho.
Mas o instinto de sobrevivência foi mais forte, os meus olhos ainda que rasos de lágrimas fixaram-se na mala daquela mãe, pousada em cima do balcão.
Sem pensar duas vezes, enfiei as minhas mãos na mala e retirei a carteira, abri-a, retirei as duas notas que tinha, embrulhei-as na mão e sai rapidamente dali.
Sentada num banco e disfarçadamente abri a mão e desfolhei as notas, vinte e cinco euros, respirei de alívio, tinha dinheiro para comprar o bilhete e regressar ao lar.
Dirigi-me a uma bilheteira e pedi um bilhete para Lisboa, a senhora disse-me boa tarde e deu-me o bilhete. Pensei que se calhar já não estava assim com tão má cara, ou então foi porque a senhora não viu os meus pés descalços.
Finalmente tinha chegado o momento de regressar, entrei no comboio, sentei-me num canto e encostei-me para trás no banco.
Finalmente podia descansar, eram cinco e meia da tarde, ainda iria chegar a tempo de jantar com os meus meninos. Guardei o bilhete no bolso das calças junto com o pacote de açúcar e fechei os olhos.
Acordei com a voz a anunciar que tínhamos chegado ao destino, abri os olhos meia assustada. Onde estava?
As pessoas iam saindo lentamente do comboio, olhei o mostrador ao fundo da carruagem, indicava “ Restauradores, 11-11-2015, 08:20”.
Como era possível? Esfreguei os olhos e olhei de novo. Estava a ver bem, eram oito e vinte da manhã e tinha chegado aos restauradores, afinal o que me tinha acontecido?
Saí do comboio, olhei-me e percebi que estava tudo bem comigo, ainda não queria acreditar, como um sonho pode ser tão real, mas sorri de contente, tinha sido apenas um dia virado ao contrário.
Levei a mão ao bolso para tirar o passe e segui o meu caminho, apressada.

No chão ficaram caídos um pacote de açúcar e vinte cêntimos. 

Carla Santos Ramada
Concurso " Um Dia Loucos" da Papel D'Arroz

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