Não podia deixar de colocar aqui o testemunho de alguém que viveu de perto, perto demais até, o inferno do fogo e a dor da perda e de como se consegue Renascer.
A minha irmã e toda a minha família próxima encontravam-se lá, no epicentro de todo aquele cenário dantesco que eu via pela televisão, foi complicado gerir a impotência de quem está longe e quer saber notícias, mas estar lá..... Deixo o meu profundo obrigado aos bombeiros, mas para mim os meus heróis foram eles, a minha família! Sim Dora Rodrigues, Renasceremos com certeza, como diria a Marisa Liz "Porque juntos somos mais fortes", porém vão existir sempre marcas que nem o tempo conseguirá apagar.
A semana que não se apaga da memória
Um dia que começou tão bem, 17 de Junho de
2017 e parece-me que ainda nem sequer terminou, passados que estão 23 dias …..
Esse dia e o seguinte e o outro… parece que nunca vão terminar!
Começou
não muito cedo, no dia anterior combinámos ir todos á praia fluvial de Cardigos
(uma das nossa preferidas) para descansarmos, pois tinha sido a primeira
comunhão dos gémeos e seria bom para eles também brincarem, lá tem muito
espaço. Saímos já por volta das dez da manhã, chegámos lá ainda a tempo de uns
mergulhos antes de almoço. Levámos marmita e fizemos pic-nic á sombra de uma
oliveira.
Foi
muito divertido, os três “picatchus” divertiam-se na água e nós divertíamo-nos
só de os ver felizes!
Estava
a ser um dia fantástico em família, não imaginávamos o que estava para
acontecer….
Por
volta das 16:00 horas, já estávamos a lanchar quando tocou o telemóvel, era a
minha sogra a dizer que havia um incêndio, que tinha começado nos Escalos
Fundeiros, mas que já estava muito feio, muito grande.
Arrumámos
logo as coisas e fomos embora! Sempre pensando que seria como tantas outras
vezes, o incêndio acabaria por ser apagado, algumas horas depois…
Pelo
caminho, ainda choveu e trovejou e nós pensámos que também seria de esperar que
acabasse por chover lá na nossa terra, pois não fica assim tão longe …. Mas não
aconteceu!
Á
medida que nos aproximávamos vimos que o incêndio já era de grandes proporções!
Chegámos pouco antes das 17:00, já havia muitos carros de bombeiros a passar e
GNR na estrada, fomos até á Tojeira, onde estavam os meus sogros e já era
“assustador”, do lado de lá da estrada que passa á frente da casa dos meus
sogros tudo ardia….. Para o lado de Gois e Pampilhosa parece que havia outro
incêndio e os aviões estariam a descarregar lá, por isso não havia aviões ali.
Liguei pela primeira vez á minha mãe, para dizer que o fogo estava feio e como
estavam as coisas lá para o lado da Derreada, disse-me que para lá ainda estava
longe, perguntei pelo meu pai, adivinhando já a resposta: “Está a trabalhar na
fábrica”
Tinha
ido de motorizada, como sempre e estava sozinho na fábrica nas Sarzedas, fiquei
preocupada claro, mas como o fogo não andava para lá….
Saímos
dali e fomos até mais acima pela estrada nacional, quando um GNR, que passou e
nos conheceu, nos disse: “ já está em Pedrógão!” Foi quando na minha cabeça a
campainha de alerta soou! Nesta altura já os meus meninos estavam muito
assustados.
Fomos embora para Pedrógão.
Quando
chegámos ao cruzamento do Vale da Manta, mesmo á entrada da vila já me parecia
muito mau, com GNR a cortar a estrada, estava nas Fontainhas, ou seja mesmo
ali, virámos e fomos pelo campo de futebol até ao cruzamento e aqui o cenário
já se tornou aterrador! Aqui senti medo, mesmo! Os bombeiros estavam na
estrada, moradores a gritarem que as casas iam arder que tiveram que fugir,
ambulâncias…. Enfim! As chamas já tinham “galgado” a estrada nacional, e
estavam já do lado do campo de futebol e Vale da Manta, às portas da vila. Como
os pequenos estavam a ficar muito assustados e aflitos, fomos até casa de uma
amiga e como estava lá a filha Laura, ficámos lá um bocadinho para ver se os
miúdos se acalmavam.
De
repente, ouvimos dizer que já tinha passado para os Troviscais, Mosteiro….Estava
a avançar com uma velocidade fora do normal…. Já passava das 19:00 horas quando
pensámos ir então para casa com os miúdos pois eles não paravam de pedir que
queriam ir para casa, diziam “mãe tenho medo, quero ir para nossa casa!”
Perante isto fomos embora.
Parámos
nos Bombeiros e disse ao meu marido para perguntar se precisariam de alguma coisa,
nós ficámos no carro os quatro há espera, quando começou um vento forte, assustador!
Os carros estacionados abanavam todos, o nosso carro “cheio” e sentíamos os
balanços ….. Horrível, parecia um “tornado”. Fomos mesmo para nossa casa, comemos
qualquer coisa.
Entretanto tinha falado com a minha mãe e ela
disse que o meu pai ainda não tinha vindo e que o fogo estava já no concelho de
Castanheira de Pêra, Sarzedas incluído (onde estava o meu pai) e que também já
andava para o lado das Regadas (muito próximo da aldeia da minha mãe), decidimos
então ir até lá ver como estavam as coisas. Chegados lá a minha mãe já estava a
ficar aflita e para dizer a verdade eu também, pois já eram perto das 22:00 horas
e o meu pai, sozinho na fábrica! Fomos até ao cruzamento das Regadas e vimos e
ouvimos aquele “inferno”, toda aquela encosta ardia….Ouviam-se rebentamentos….
Aterrador!, voltámos para casa dos meus pais.
Os
meus tios e primos de Lisboa também estavam ao pé da minha mãe, pois tinham vindo
para a comunhão dos meus meninos e ficaram de fim-de-semana, nesta altura a
minha mãe ligou novamente ao meu pai, que lhe disse que tinha conseguido falar
com o patrão, que já vinha a caminho mas não conseguia passar para lá, disse
também que de lá via já casas a arder na aldeia. Eu disse á minha mãe que lhe
dissesse que não viesse, porque de mota nunca iria conseguir….. Regressámos
então para Pedrógão para nossa casa, sossegámos os miúdos e lá se deitaram.
Eles adormeceram, mas eu estava longe de pensar na terrível noite que iria passar
sentada na cadeira da varanda da minha casa…….Até de manhã!
Quando
viemos da Derreada, ficámos a saber que já existiam 4 bombeiros feridos, que
seriam da Castanheira de Pêra, e que havia já casas ardidas, e que duas pessoas
da Derreada estariam gravemente feridas, o fogo estava portanto incontrolável.
Tomei consciência que a situação era grave.
Uma
vez, que os meninos estavam já a dormir, o meu marido foi ver como estavam as
coisas para o lado da Tojeira e não só e eu fiquei sozinha sentada naquela
cadeira verde na varanda da minha casa a rezar, a sentir aquele cheiro que se
entranhava no nariz, a ver todo aquele fumo que estava no ar juntamente com
muitas “velhas” que iam caindo…. E a ouvir o som dos carros de bombeiros a
apitar, ambulâncias, GNR e tudo o mais…..
Entretanto
falei com a minha irmã que está em Lisboa e para além de a deixar também
preocupada foi ela que me disse algumas coisas do que estava a ver na televisão
porque nós estávamos sem comunicações, no facebook e nas noticias, o numero de
mortos aumentava e aumentava e aumentava…..Nem dava para acreditar, numa coisa
assim, como era possível, tantos mortos, já falavam em 24! Tinha visto muitos
incêndios, mas assim com vítimas mortais, e tantas nunca! E ainda não se sabia
tudo…
Ligo novamente á minha mãe, uma de muitas,
muitas vezes que liguei naquela noite, ainda conseguíamos falar e ela nessa
altura disse-me o que me deixou completamente “assustada”, tinha perdido a
comunicação com o meu pai, ele estava portanto incontactável, a ultima vez que
falaram foi quando eu tinha lá ido acima, seriam por volta das 22:00 horas….. Ela também estava já muito aflita…. Não sabia
o que fazer, mas estava com os meus tios e primos…menos mal, lembro-me de
pensar na altura!
Falei
também mais que uma vez com a minha irmã que também estava preocupada e
longe….. sobretudo longe! Se ao menos ela pudesse estar ali…ia perceber como me
sentia de coração tão apertado!!
Quando
o meu marido chegou passado pouco tempo, disse-me o que eu nem queria
acreditar, havia já muitas mortes, na tal estrada N236, tinha dado na TV, mas
nós não tínhamos rede, não tínhamos TV, ainda assim, o que tive sempre acesso
foi o facebook, onde me ia “actualizando”! Depois disse que um dos mortos era a
filha da Gina!! Tinha 3 anitos! Aí tremi, senti um arrepio, o coração quase que
me saía do peito e pensava: “Como é que pode ser? Meu Deus, como…?”
A
partir daqui e até de manhã, o meu marido ia e vinha, vezes sem conta ..… A
tentar passar para as Sarzedas, porque eu lhe pedia: “Por favor vai ver se já
consegues passar” e entretanto ligava a todos os que me lembrava que pudessem
saber do meu pai e nada, não havia rede…já de madrugada, o patrão do meu pai,
passou na Derreada e disse á minha mãe que ia tentar de alguma maneira chegar á
fábrica…..
Meu
Deus e eu ali continuava sentada naquela cadeira verde, chorava, chorei tanto!
Pedia, rezava, implorava a Deus que protegesse o meu pai.
Quando
já de manhã, eram 07:30h o meu marido se preparava para ir novamente ver se já
passava, a minha mãe ligou e disse-me “ Dora o teu pai chegou agora, o patrão
veio trazê-lo” e eu perguntei: “Ele está bem?” “Sim disse ela, está”, liguei á
minha irmã que lá longe também se devia estar a sentir angustiada.
Foi
um alivio, acho que chorei novamente, mas desta vez de alegria e fui tomar
banho, fui á Vila mais propriamente á Igreja, senti que tinha que ir agradecer
o Milagre que ELE fez por mim naquela noite! Porque, sim eu acredito foi um
Milagre!
Nesse
Domingo de manhã as noticias tornaram-se ainda mais aterradoras, falava-se em
63 mortos, estava incrédula….. Nesse mesmo dia começou uma onda de
solidariedade nunca antes vista, em Portugal! Chegavam camiões, e camiões
cheios de coisas, comida, roupa…..Muita coisa mesmo! Nos Bombeiros já eram
muitos os voluntários a ajudar.
Os
miúdos acordaram, o cheiro a queimado continuava, o fumo…tudo, o incêndio
continuava, já tinha passado para Figueiró e tudo….. fomos almoçar aos meus
sogros, afinal era domingo, mas a missa seria só ás 15:00h e nem sabia se iria
haver….
Depois
de almoço, viemos para casa, os miúdos como tinham dormido de noite, ficaram a
ver televisão e eu e o meu marido deitamo-nos para tentar descansar um pouco mas
…. Foi por pouco tempo, logo de seguida, deveriam ser umas 16:00 horas, toca o
meu telemóvel, era a minha mãe: ”Dora, ai… o fogo está a vir para cá, já está
nas Regadas e também do lado da Ervideira!” Sentei-me logo na cama e disse ao
meu marido: “ Fernando, anda temos que ir, o fogo esta a chegar á Derreada”, lá
fomos e pensámos que não podíamos levar para lá os pequenos, não sabíamos como
ia ser, então passámos em casa da Céu no Vale da Manta e deixamo-los lá.
Chegámos
á Derreada, estavam os meus pais mais uns vizinhos na estrada e realmente a
aldeia estava a ficar cercada pelo fogo, de todos os lados.
Foi
quando veio o Presidente da Junta de freguesia, que já tinha lá estado e disse
que fossemos regar as casas, regar tudo, até pudermos porque não havia
bombeiros para ir para lá e foi isso que fomos fazer. O meu primeiro pensamento
foi: “temos de evacuar o avô!” Liguei para o meu colega, que por acaso é também
o Presidente da Junta e disse-lhe isso mesmo, ao que ele me disse que já iam
ambulâncias a caminho para o efeito. Enquanto uns ligavam as mangueiras eu e a
minha mãe fomos ter com o meu avô, que estava sentado debaixo da varanda, como
era hábito dele. Por esta altura havia já muito, muito fumo, parecia que era já
noite…. E a minha mãe disse que ele tinha que comer um iogurte, ele comeu, e eu
disse-lhe: “avô temos que ir embora, o fogo está perto”, no fim de comer o
iogurte, ajudei-o a levantar e trouxe-o até á estrada, á porta de casa.
Nunca
mais vou esquecer estes minutos……. (enquanto o ajudava a caminhar sem a bengala
até á ambulância que tinha já chegado) ele dizia-me “Dora, para onde é que
vamos?” Eu disse-lhe: “avô vai para o centro de saúde de Pedrogão, porque nós
ainda podemos correr e saltar e o avô não”, tentava “desdramatizar” o que na
verdade já era dramático.
Ele
já quase a chegar á ambulância disse-me: “Agora daqui é já para o cemitério!”,
eu respondi-lhe “Mau, não é nada, ainda há-de voltar para a sua casa!”……. Não
voltou!! Disse-me ainda “E a minha casa?“, a sua casa há-de cá estar á sua
espera, não se preocupe”, disse-lhe.
Já
dentro da ambulância, onde ia sentado, perguntou-me: “ E já morreu muita
gente?” e eu disse-lhe: “Já avô, já morreu muita gente. Agora vá descansado que
nós vamos lá ter consigo, está bem?”. E ele lá foi para Pedrógão.
Depois
disto, tudo se complicou, fui buscar umas camisolas interiores do meu pai que
estavam lavadas e dei uma ao meu marido, fiquei com outra para mim, molhei-a
torci e atei á volta da cara a tapar a boca, porque já sentia a garganta a
“picar” de tanto fumo que havia! E numa certa altura, o meu marido fez a
pergunta: Como é, ficamos ou vamos embora?” Só precisei de pensar uns segundos
e disse “Ficamos!”
O
fogo fazia um barulho ensurdecedor e ainda disse ao meu marido: “ se ele chegar
aqui com esta força só temos tempo de fugir para dentro da casa dos meus pais
por ser a mais segura.” Mas no fundo houve a factor “sorte” talvez, a nosso
favor, o vento não era forte naquela altura!
Regámos
tudo, a casa do meu avô, os meus pais a casa deles e a minha madrinha e o meu
primo a deles claro, quando passado um tempo não sei agora precisar quanto,
apareceram três carrinhas da Força de Intervenção da GNR, pararam na estrada,
subiram ao terraço onde estávamos a regar as coisas e com uma agressividade
estonteante, ordenaram que saíssemos imediatamente dali! Não ficava ninguém!
Naquele momento digo, senti-me na pele de um qualquer arruaceiro!
Depois
de tentar acalmar os ânimos que entretanto estavam já exaltados, lá consentimos
em sair. Fomos no nosso carro e os meus pais no deles.
Saímos
da nossa aldeia, sem meios de combate no local, sem ninguém…. E enquanto
percorria a estrada a caminho de Pedrógão (a ordem era ir para a Santa Casa da
Misericórdia), sentia um nó na garganta e um aperto enorme no coração! Lembro-me
de pensar: “Meu Deus, meu Deus, a ti deixo entregue as nossas casas!” E foi
Deus o único bombeiro, penso eu!
Chegados
á Venda da Gaita parámos, o meu primo também, a minha madrinha tinha ido na
ambulância, estava muito agitada, perturbada! Uma amiga minha, que também está
na Junta, disse-nos para irmos jantar, comer qualquer coisa, no “tasco” da mãe
que fica á beira da estrada, na Tojeira, havia lá refeições para quem, como nós
precisava. Já deveriam passar das 20:00h. Aceitámos, apesar de ninguém ter fome,
fomos buscar a comida e comemos em casa da minha sogra que era a caminho.
Dali
fomos logo para Pedrógão, ter com o meu avô. Ainda passámos no Centro de saúde,
a perguntar, onde nos disseram, que tinha ido para o Lar. Fomos lá, onde nos
informaram, que ele estava lá dentro e nos indicaram o caminho, mas estava um
pouco agitado e ansioso, a perguntar pelas filhas e neta, então uma psicóloga
da Cruz Vermelha já tinha falado com ele.
Quando
chegámos ao pé dele, disse-lhe: “Então avô, já estamos aqui, estamos todos bem,
eu não lhe disse que vínhamos ter consigo? Deu-lhe um beijinho na cabeça, com
uma festinha”. Ele olhou para nós todos e chorou!
Ali,
estava já muita gente, que tinham sido evacuadas de outras aldeias, havia
pessoas lá dentro sentadas, em cadeiras, (as mais idosas), até cãezinhos eu vi
lá presos com um cordelito, a uma pata da cadeira.
Cá fora o cenário era também caótico, com
pessoas deitadas em cima dos muros, ou no chão….
Fomos
entretanto, a casa da Céu ver os nossos meninos, estavam bem! Estavam
entretidos! Só ficaram mais cabisbaixos, quando sem querer até, falámos na
morte da filha da Gina, a Bianca de 3 anos. Optámos por deixa-los lá a dormir.
Estava preocupada com as casas na Derreada, se estaria tudo bem e queria lá
voltar.
Depois
de irmos novamente á Santa Casa, falar com os meus pais e ver se o avô estaria
bem, falei com a minha irmã que me disse que tinha conseguido saber através do
facebook que já não havia perigo na Derreada, disse ao meu marido, que queria
ir lá ver como estavam as coisas e fomos!
Devo
dizer, que tal como saímos, sem ninguém, também fomos até á aldeia, sem que
alguém nos impedisse. Á medida que nos aproximávamos, a ansiedade aumentava e
pensava, como estariam as coisas? Será que tinha ardido alguma casa? Mas não,
Graças a Deus!
Entramos,
passámos no meio da aldeia e saímos, vimos que nenhuma casa tinha ardido,
apesar de ainda haver alguns focos a arder.
Fiquei depois a saber, que tinham ficado lá
algumas pessoas “escondidas” dentro das casas aquando da evacuação compulsiva!
E também soubemos que na serração também tinham ficado lá com um bombeiro e um
carro que não tinham deixado sair de lá. Foi no caso concreto da nossa casa, a
nossa “sorte”.
De
volta ao Lar e já mais descansada, fui dizer aos meus pais, madrinha e primo,
que tínhamos lá ido (eles não sabiam) e que descansassem, estava tudo bem,
nenhuma casa ardeu!
Depois
disto, disse aos meus pais e eles foram connosco para minha casa descansar um pouco.
Pouco, porque eram 02:00 horas da madrugada, quiseram ir para casa,
compreendi-os e lá foram. Nós ficámos! Foi nesta altura que me deitei para
conseguir dormir alguma coisa, pouca, porque custou a fechar os olhos e logo o
despertador tocou, para me dizer que tinha que ir trabalhar. O meu marido ficou
em casa, levantei-me “ atabalhoadamente, ainda zonza!! Mas tinha que ser! E o
que tem que ser tem muita força! Pensei….
No
caminho para Figueiró dos Vinhos, pelo IC8, fiquei em choque……á medida que ia
avançando, não via nada á minha volta, ao longo de 17 Km, que não fosse preto!
Tudo preto! Um cheiro intenso a queimado, fumo, ainda muito fumo! E sem dar
conta as lágrimas já escorriam pela minha face. Pensava, meu Deus, não há vida
aqui, só morte! Nem plantas, nem animais, tudo morreu….Nem fauna nem flora! Foi
um caminho muito difícil de percorrer naquela manhã de segunda – feira, dia 19
de Junho de 2017!
De
repente lembrei-me “ a minha mãe faz anos hoje!”, mais logo tenho que lhe
ligar, devem estar ainda a descansar!” Pensava eu que o pior tinha passado! Mas
o pior ainda estaria para vir!
Chegada
ao meu local de trabalho, nada podia fazer, pois não havia electricidade,
comunicações, nada! Mas tínhamos que ficar eu e outro colega de Pedrógão.
Apenas o meu telemóvel conseguia funcionar.
Ainda
tentei ligar á minha mãe, mas já não me lembro se consegui falar com ela ou não,
sei que estava para ir almoçar, quando recebo uma chamada da Lígia da Derreada
e fiquei logo assustada, “O que queria ela?” e tinha razão. Disse-me que o
Pedro vinha para casa com a minha madrinha e o meu avô e tiveram um acidente na
reta dos Escalos Fundeiros, mas ela não me sabia dizer mais nada, estava ao pé
da minha mãe, que também não sabia nada.
Tremi,
fiquei imóvel, a tentar raciocinar o melhor que podia e conseguia.
Liguei ao Pedro e nada, não tinha rede. Falei
entretanto com a minha irmã, que também ficou aflita, liguei ao meu marido e
pedi-lhe que tentasse saber deles, como estariam. Enquanto não sabia de nada
lembro-me de pensar e rezar: “ O que estará mais para acontecer? E pedi, meu
Deus, se tiveres que levar alguém, que não seja o meu primo nem a minha
madrinha!”
Passada
uma hora talvez, de várias tentativas de telefonemas, a minha irmã disse-me que
já sabia que o Pedro estava bem e que o meu avô e madrinha tinham ido para
Coimbra. Pouco depois ligou o meu marido, que me disse que no Centro de Saúde,
lhe disseram que eles tinham lá passado, mas que iam os dois pelo pé deles, que
tinham ido por precaução fazer exames, mas que mais logo já podia ir busca-los,
aqui respirei fundo, de alivio., afinal estava tudo bem! Liguei á minha mãe que
estava ao pé do Pedro, que estava bastante transtornado, mas bem. Disse, que
mais logo iam lá ao hospital para busca-los! Ainda passaram pela fábrica do meu
pai.
À
tarde lá foram. Eu descansei um pouco, no fim do dia tive de ir á Sertã tratar
de umas coisas de trabalho e como a minha mãe fazia anos pensei em levar uns
frangos assados e comíamos todos lá em casa quando viessem de Coimbra. Ao menos
para lembrar o seu aniversário!
Já
na Sertã, o meu telemóvel não parava de tocar, a perguntarem pelo avô e
madrinha. A minha mãe tinha-me dito que estavam a fazer exames, mas estavam
bem, o meu avô também estava bem.
A
Daniela também vinha de Abrantes, então era perfeito, jantávamos todos lá em
casa, quando saí comprei os frangos e também um bolo de bolacha. “Ao menos um
bolito” pensei.
Já
em casa com a Daniela e marido, passava das 20:00 horas, quando a minha mãe
ligou, a madrinha tinha alta, mas o meu avô ainda ficava porque estava a fazer
“uma ponta de febre” e ia fazer mais alguns exames.
Ok,
pensei “Então venham andando que eu vou pondo a mesa, já cá está a Daniela”,
disse.
Passados
talvez uns 15 minutos ou nem tanto, liga-me o Pedro e eu não estava a perceber
nada do que ele dizia, perguntei, uma vez e outra e ainda outra: “O quê? Não
estou a perceber!” E então ouvi, percebi bem o que eu não queria e não esperava
ouvir: “ligaram agora do hospital, o avô faleceu”
Deixei-me
cair no sofá que estava atrás de mim e fiquei ali sentada, com o telefone
colado ao ouvido e as lágrimas a correrem uma atrás da outra, copiosamente….
Acho que todos acabaram por entender o que se passava.
Finalmente
desliguei o telefone e consegui dizer: “o meu avô faleceu”.
Ficou
um silêncio tão grande na minha sala, apenas olhávamos uns para os outros,
chorávamos, e no olhar de cada um podia ver a pergunta: “mas como? Como?”, Também
agora os meus meninos choravam, cabisbaixos, o meu marido ligou á minha sogra e
foi lá levá-los.
Seguiram-se
uns telefonemas difíceis, para o meu tio, irmã, primos, para o Sr. da
funerária…enfim! Quando chegaram, lá comemos o frango, porque o bolo, esse
esteve oito dias no meu frigorífico, sem que conseguisse abri-lo.
Acabou no caixote do lixo!
Foram todos embora, porque só no dia seguinte
é que poderíamos ir levantar o corpo e como ninguém quis (porque não eram capazes)
ficou combinado que de manhã cedinho iria eu com o meu marido e o Sr. Carlos da
funerária.
Já
na minha cama, a noite foi difícil, dura …..
De
manha lá fomos, devo dizer que foi das coisas mais difíceis que já fiz na minha
vida.
Chegados
á casa mortuária do hospital, não deixaram levantar o corpo, tinha que ser
ouvida no DIAP, disse o Sr. Carlos. Como? Sim, como tinha dado entrada como
consequência de um acidente, teria de ser autopsiado e o que deveria eu dizer
lá? Que não queríamos que ele fosse autopsiado, claro, senão quando nos iriam
devolver o corpo, com tantos corpos que lá estavam vitimas do incêndio?
Lá
fomos, a espera foi terrível…… uma hora talvez, eu estava á beira de um ataque
de nervos, mas não podia mostrar! O que mais fiz durante esse tempo? Rezava, no
meu íntimo rezava e pedia ao Espirito Santo que me iluminasse com a sua Luz e
eu soubesse dizer as palavras certas.
E
assim foi, lá fui ouvida, durante 45 longos minutos! Depois esperei mais 15
minutos e lá veio a resposta: “ A procuradora dispensou a autópsia”.
Quando sai de lá, as minha pernas ainda
tremiam, toda eu tremia e pensei “Foi a ultima coisa que fiz por ti avô”.
Passámos
para a etapa seguinte, fomos para o Hospital para levantar o corpo, finalmente.
Já lá estavam os meus pais, o meu tio e primos, depois tive que ir lá dentro reconhecer
o corpo do meu avô….Apenas olhei para ele ali deitado, o senhor perguntou-me: É
este senhor? Ao que eu respondi que sim, era. Dei-lhe um beijo na testa fria,
gelada e sai em lágrimas!
O
que se seguiu foi um velório triste, muito triste, mais triste que o
normal….por causa do incêndio, que ainda andava a lavrar perto da Derreada.
O
Sr. Carlos ainda fez “força” para que fosse em Pedrógão, mas nós não quisemos,
já era suficientemente mau que tivesse falecido fora da sua casa, ainda teria
de ser velado fora da sua terra? Não, nós não quisemos! Apesar dos
constrangimentos e de estradas cortadas, a GNR a pedir que nos juntássemos no
largo da aldeia para o caso de ser preciso evacuar novamente as pessoas, mas
nós não aceitámos sair dali e lá ficámos.
Agora,
passados que estão 25 dias do início de toda esta tragédia, ainda não
desapareceram da minha memória todas estas imagens e vai demorar!
E
todos os dias, passo naquele IC8 e vejo aquele cenário dantesco….. Aquela
escuridão!
Mesmo
que queira esquecer não consigo!
Mas
as más notícias não tinham terminado, no dia do funeral do meu avô, já todos
tinham ido embora, deitei-me na minha cama para tentar dormir um pouco…. Toca o
telemóvel, era a professora de música, a Ana, que me disse: “Dora tenho uma má notícia
para te dar, faleceu o professor de trombone do Edgar, o professor Jaime, num
acidente de carro, foi agora mesmo!” Sentei-me num ápice na cama, acho que fiquei
uns segundos em silêncio a tentar “absorver” a triste noticia e pensei: “Mas
quando é que isto acaba?”.
Nesse dia não tive coragem de contar ao Edgar,
disse ao meu marido e concordámos em esperar mais uns dias …..É muita coisa
para uma criança de 11 anos!
No
entanto, no dia seguinte já todos me diziam que tinha morrido o professor
dele….Então achámos melhor contar-lhe. Primeiro disse-lhe que tinha tido um
acidente muito grave e estava muito mal, no dia seguinte é que lhe disse que
ele tinha falecido.
O
que é que nós fazemos quando o nosso filho de 11 anos recebe uma notícia destas
e se abraça a ti a chorar? E quando já no outro dia, estás a trabalhar, liga a
tua sogra e te diz que não sabe o que fazer porque o Edgar está deitado no
sofá, só chora, não quer brincar, porque morreu o professor dele? Senti-me tão
impotente! Nós conseguimos aguentar a dor, o sofrimento…..Mas e as crianças?
Sim eles também aprendem a crescer assim, mas doí tanto vê-los sofrer!
E
foi esta a pior semana da minha vida! Sem dúvida.
Todos
os dias oiço histórias terríveis, de pessoas que conheço bem, clientes da Caixa
que passaram por situações absolutamente dramáticas, de como escaparam fechados
na dispensa, por baixo das escadas, a rezar ou deitado com a mulher já
desmaiada debaixo de uma manilha de cimento. Pessoas que perderam os seus entes
mais queridos, um que perdeu a filha com apenas três anos, a esposa em Coimbra
queimada, ou a Susana que me diz, que esteve sempre a falar com a mãe e lhe
pediu para vir para o pé dela e acabou por os perder a todos, a mãe, o irmão, a
cunhada e o padrasto! Todas pessoas que eu conhecia! São relatos na primeira
pessoa, não são lidos num qualquer jornal, revista ou facebook, são contados
pelos próprios protagonistas desta infeliz e triste, muito triste história!
Depois
dou por mim a pensar: “ Meu Deus, a minha dor é tão pequenina, quando comparada
com estas pessoas!” Mas não sei porquê não “apaga” o que continuo a sentir….
Não tenho vontade de rir, de brincar, de nada…. Sinto uma tristeza tão grande!.
Não só porque perdi, assim de repente, sem esperar, o meu querido avô, mas
também porque todos os dias, vejo a escuridão á minha volta e oiço as histórias
de quem ficou, de quem perdeu tudo, só ficou com a roupa que tinha, como a
Anabela com 2 filhos, o marido e a mãe.
Já
ofereci ajuda a todos eles, mas isso também não me faz sentir melhor…. Não sei
porquê! Só ainda não consegui ir ver a Gina…..Acho que iria ser uma péssima
visita! Talvez um dia consiga falar com ela e dizer-lhe que terá que arranjar
forças para continuar!
Escrever
faz-me sentir melhor, por isso decidi, que ia escrever a minha experiência,
tudo o que vivi e que ainda está bem presente na minha memória.
Só porque sim, só para mim, talvez…. Não sei.
Entretanto
vou de férias e talvez quando voltar, me sinta melhor! Com mais força de
acreditar que NÓS VAMOS RENASCER! Pelo menos tenho essa esperança!
Por Dora Santos Rodrigues
Pedrógão
Grande, 12 de Julho de 2017Carla Santos Ramada