sexta-feira, 14 de julho de 2017

O testemunho real de uma semana devastadora

Não podia deixar de colocar aqui o testemunho de alguém que viveu de perto, perto demais até, o inferno do fogo e a dor da perda e de como se consegue Renascer.
A minha irmã e toda a minha família próxima encontravam-se lá, no epicentro de todo aquele cenário dantesco que eu via pela televisão, foi complicado gerir a impotência de quem está longe e quer saber notícias, mas estar lá..... Deixo o meu profundo obrigado aos bombeiros, mas para mim os meus heróis foram eles, a minha família! Sim Dora Rodrigues, Renasceremos com certeza, como diria a Marisa Liz "Porque juntos somos mais fortes", porém vão existir sempre marcas que nem o tempo conseguirá apagar. 



A semana que não se apaga da memória

 Um dia que começou tão bem, 17 de Junho de 2017 e parece-me que ainda nem sequer terminou, passados que estão 23 dias ….. Esse dia e o seguinte e o outro… parece que nunca vão terminar!
Começou não muito cedo, no dia anterior combinámos ir todos á praia fluvial de Cardigos (uma das nossa preferidas) para descansarmos, pois tinha sido a primeira comunhão dos gémeos e seria bom para eles também brincarem, lá tem muito espaço. Saímos já por volta das dez da manhã, chegámos lá ainda a tempo de uns mergulhos antes de almoço. Levámos marmita e fizemos pic-nic á sombra de uma oliveira.
Foi muito divertido, os três “picatchus” divertiam-se na água e nós divertíamo-nos só de os ver felizes!
Estava a ser um dia fantástico em família, não imaginávamos o que estava para acontecer….
Por volta das 16:00 horas, já estávamos a lanchar quando tocou o telemóvel, era a minha sogra a dizer que havia um incêndio, que tinha começado nos Escalos Fundeiros, mas que já estava muito feio, muito grande.
Arrumámos logo as coisas e fomos embora! Sempre pensando que seria como tantas outras vezes, o incêndio acabaria por ser apagado, algumas horas depois…
Pelo caminho, ainda choveu e trovejou e nós pensámos que também seria de esperar que acabasse por chover lá na nossa terra, pois não fica assim tão longe …. Mas não aconteceu!
Á medida que nos aproximávamos vimos que o incêndio já era de grandes proporções! Chegámos pouco antes das 17:00, já havia muitos carros de bombeiros a passar e GNR na estrada, fomos até á Tojeira, onde estavam os meus sogros e já era “assustador”, do lado de lá da estrada que passa á frente da casa dos meus sogros tudo ardia….. Para o lado de Gois e Pampilhosa parece que havia outro incêndio e os aviões estariam a descarregar lá, por isso não havia aviões ali. Liguei pela primeira vez á minha mãe, para dizer que o fogo estava feio e como estavam as coisas lá para o lado da Derreada, disse-me que para lá ainda estava longe, perguntei pelo meu pai, adivinhando já a resposta: “Está a trabalhar na fábrica”
Tinha ido de motorizada, como sempre e estava sozinho na fábrica nas Sarzedas, fiquei preocupada claro, mas como o fogo não andava para lá….
Saímos dali e fomos até mais acima pela estrada nacional, quando um GNR, que passou e nos conheceu, nos disse: “ já está em Pedrógão!” Foi quando na minha cabeça a campainha de alerta soou! Nesta altura já os meus meninos estavam muito assustados.
 Fomos embora para Pedrógão.
Quando chegámos ao cruzamento do Vale da Manta, mesmo á entrada da vila já me parecia muito mau, com GNR a cortar a estrada, estava nas Fontainhas, ou seja mesmo ali, virámos e fomos pelo campo de futebol até ao cruzamento e aqui o cenário já se tornou aterrador! Aqui senti medo, mesmo! Os bombeiros estavam na estrada, moradores a gritarem que as casas iam arder que tiveram que fugir, ambulâncias…. Enfim! As chamas já tinham “galgado” a estrada nacional, e estavam já do lado do campo de futebol e Vale da Manta, às portas da vila. Como os pequenos estavam a ficar muito assustados e aflitos, fomos até casa de uma amiga e como estava lá a filha Laura, ficámos lá um bocadinho para ver se os miúdos se acalmavam.
De repente, ouvimos dizer que já tinha passado para os Troviscais, Mosteiro….Estava a avançar com uma velocidade fora do normal…. Já passava das 19:00 horas quando pensámos ir então para casa com os miúdos pois eles não paravam de pedir que queriam ir para casa, diziam “mãe tenho medo, quero ir para nossa casa!” Perante isto fomos embora.
Parámos nos Bombeiros e disse ao meu marido para perguntar se precisariam de alguma coisa, nós ficámos no carro os quatro há espera, quando começou um vento forte, assustador! Os carros estacionados abanavam todos, o nosso carro “cheio” e sentíamos os balanços ….. Horrível, parecia um “tornado”. Fomos mesmo para nossa casa, comemos qualquer coisa.
 Entretanto tinha falado com a minha mãe e ela disse que o meu pai ainda não tinha vindo e que o fogo estava já no concelho de Castanheira de Pêra, Sarzedas incluído (onde estava o meu pai) e que também já andava para o lado das Regadas (muito próximo da aldeia da minha mãe), decidimos então ir até lá ver como estavam as coisas. Chegados lá a minha mãe já estava a ficar aflita e para dizer a verdade eu também, pois já eram perto das 22:00 horas e o meu pai, sozinho na fábrica! Fomos até ao cruzamento das Regadas e vimos e ouvimos aquele “inferno”, toda aquela encosta ardia….Ouviam-se rebentamentos…. Aterrador!, voltámos para casa dos meus pais.
Os meus tios e primos de Lisboa também estavam ao pé da minha mãe, pois tinham vindo para a comunhão dos meus meninos e ficaram de fim-de-semana, nesta altura a minha mãe ligou novamente ao meu pai, que lhe disse que tinha conseguido falar com o patrão, que já vinha a caminho mas não conseguia passar para lá, disse também que de lá via já casas a arder na aldeia. Eu disse á minha mãe que lhe dissesse que não viesse, porque de mota nunca iria conseguir….. Regressámos então para Pedrógão para nossa casa, sossegámos os miúdos e lá se deitaram. Eles adormeceram, mas eu estava longe de pensar na terrível noite que iria passar sentada na cadeira da varanda da minha casa…….Até de manhã!
Quando viemos da Derreada, ficámos a saber que já existiam 4 bombeiros feridos, que seriam da Castanheira de Pêra, e que havia já casas ardidas, e que duas pessoas da Derreada estariam gravemente feridas, o fogo estava portanto incontrolável. Tomei consciência que a situação era grave.
Uma vez, que os meninos estavam já a dormir, o meu marido foi ver como estavam as coisas para o lado da Tojeira e não só e eu fiquei sozinha sentada naquela cadeira verde na varanda da minha casa a rezar, a sentir aquele cheiro que se entranhava no nariz, a ver todo aquele fumo que estava no ar juntamente com muitas “velhas” que iam caindo…. E a ouvir o som dos carros de bombeiros a apitar, ambulâncias, GNR e tudo o mais…..
Entretanto falei com a minha irmã que está em Lisboa e para além de a deixar também preocupada foi ela que me disse algumas coisas do que estava a ver na televisão porque nós estávamos sem comunicações, no facebook e nas noticias, o numero de mortos aumentava e aumentava e aumentava…..Nem dava para acreditar, numa coisa assim, como era possível, tantos mortos, já falavam em 24! Tinha visto muitos incêndios, mas assim com vítimas mortais, e tantas nunca! E ainda não se sabia tudo…
 Ligo novamente á minha mãe, uma de muitas, muitas vezes que liguei naquela noite, ainda conseguíamos falar e ela nessa altura disse-me o que me deixou completamente “assustada”, tinha perdido a comunicação com o meu pai, ele estava portanto incontactável, a ultima vez que falaram foi quando eu tinha lá ido acima, seriam por volta das 22:00 horas…..  Ela também estava já muito aflita…. Não sabia o que fazer, mas estava com os meus tios e primos…menos mal, lembro-me de pensar na altura!
Falei também mais que uma vez com a minha irmã que também estava preocupada e longe….. sobretudo longe! Se ao menos ela pudesse estar ali…ia perceber como me sentia de coração tão apertado!!
Quando o meu marido chegou passado pouco tempo, disse-me o que eu nem queria acreditar, havia já muitas mortes, na tal estrada N236, tinha dado na TV, mas nós não tínhamos rede, não tínhamos TV, ainda assim, o que tive sempre acesso foi o facebook, onde me ia “actualizando”! Depois disse que um dos mortos era a filha da Gina!! Tinha 3 anitos! Aí tremi, senti um arrepio, o coração quase que me saía do peito e pensava: “Como é que pode ser? Meu Deus, como…?”
A partir daqui e até de manhã, o meu marido ia e vinha, vezes sem conta ..… A tentar passar para as Sarzedas, porque eu lhe pedia: “Por favor vai ver se já consegues passar” e entretanto ligava a todos os que me lembrava que pudessem saber do meu pai e nada, não havia rede…já de madrugada, o patrão do meu pai, passou na Derreada e disse á minha mãe que ia tentar de alguma maneira chegar á fábrica…..
Meu Deus e eu ali continuava sentada naquela cadeira verde, chorava, chorei tanto! Pedia, rezava, implorava a Deus que protegesse o meu pai.
Quando já de manhã, eram 07:30h o meu marido se preparava para ir novamente ver se já passava, a minha mãe ligou e disse-me “ Dora o teu pai chegou agora, o patrão veio trazê-lo” e eu perguntei: “Ele está bem?” “Sim disse ela, está”, liguei á minha irmã que lá longe também se devia estar a sentir angustiada.
Foi um alivio, acho que chorei novamente, mas desta vez de alegria e fui tomar banho, fui á Vila mais propriamente á Igreja, senti que tinha que ir agradecer o Milagre que ELE fez por mim naquela noite! Porque, sim eu acredito foi um Milagre!
Nesse Domingo de manhã as noticias tornaram-se ainda mais aterradoras, falava-se em 63 mortos, estava incrédula….. Nesse mesmo dia começou uma onda de solidariedade nunca antes vista, em Portugal! Chegavam camiões, e camiões cheios de coisas, comida, roupa…..Muita coisa mesmo! Nos Bombeiros já eram muitos os voluntários a ajudar.
Os miúdos acordaram, o cheiro a queimado continuava, o fumo…tudo, o incêndio continuava, já tinha passado para Figueiró e tudo….. fomos almoçar aos meus sogros, afinal era domingo, mas a missa seria só ás 15:00h e nem sabia se iria haver….

Depois de almoço, viemos para casa, os miúdos como tinham dormido de noite, ficaram a ver televisão e eu e o meu marido deitamo-nos para tentar descansar um pouco mas …. Foi por pouco tempo, logo de seguida, deveriam ser umas 16:00 horas, toca o meu telemóvel, era a minha mãe: ”Dora, ai… o fogo está a vir para cá, já está nas Regadas e também do lado da Ervideira!” Sentei-me logo na cama e disse ao meu marido: “ Fernando, anda temos que ir, o fogo esta a chegar á Derreada”, lá fomos e pensámos que não podíamos levar para lá os pequenos, não sabíamos como ia ser, então passámos em casa da Céu no Vale da Manta e deixamo-los lá.
Chegámos á Derreada, estavam os meus pais mais uns vizinhos na estrada e realmente a aldeia estava a ficar cercada pelo fogo, de todos os lados.
Foi quando veio o Presidente da Junta de freguesia, que já tinha lá estado e disse que fossemos regar as casas, regar tudo, até pudermos porque não havia bombeiros para ir para lá e foi isso que fomos fazer. O meu primeiro pensamento foi: “temos de evacuar o avô!” Liguei para o meu colega, que por acaso é também o Presidente da Junta e disse-lhe isso mesmo, ao que ele me disse que já iam ambulâncias a caminho para o efeito. Enquanto uns ligavam as mangueiras eu e a minha mãe fomos ter com o meu avô, que estava sentado debaixo da varanda, como era hábito dele. Por esta altura havia já muito, muito fumo, parecia que era já noite…. E a minha mãe disse que ele tinha que comer um iogurte, ele comeu, e eu disse-lhe: “avô temos que ir embora, o fogo está perto”, no fim de comer o iogurte, ajudei-o a levantar e trouxe-o até á estrada, á porta de casa.
Nunca mais vou esquecer estes minutos……. (enquanto o ajudava a caminhar sem a bengala até á ambulância que tinha já chegado) ele dizia-me “Dora, para onde é que vamos?” Eu disse-lhe: “avô vai para o centro de saúde de Pedrogão, porque nós ainda podemos correr e saltar e o avô não”, tentava “desdramatizar” o que na verdade já era dramático.
Ele já quase a chegar á ambulância disse-me: “Agora daqui é já para o cemitério!”, eu respondi-lhe “Mau, não é nada, ainda há-de voltar para a sua casa!”……. Não voltou!! Disse-me ainda “E a minha casa?“, a sua casa há-de cá estar á sua espera, não se preocupe”, disse-lhe.
Já dentro da ambulância, onde ia sentado, perguntou-me: “ E já morreu muita gente?” e eu disse-lhe: “Já avô, já morreu muita gente. Agora vá descansado que nós vamos lá ter consigo, está bem?”. E ele lá foi para Pedrógão.
Depois disto, tudo se complicou, fui buscar umas camisolas interiores do meu pai que estavam lavadas e dei uma ao meu marido, fiquei com outra para mim, molhei-a torci e atei á volta da cara a tapar a boca, porque já sentia a garganta a “picar” de tanto fumo que havia! E numa certa altura, o meu marido fez a pergunta: Como é, ficamos ou vamos embora?” Só precisei de pensar uns segundos e disse “Ficamos!”
O fogo fazia um barulho ensurdecedor e ainda disse ao meu marido: “ se ele chegar aqui com esta força só temos tempo de fugir para dentro da casa dos meus pais por ser a mais segura.” Mas no fundo houve a factor “sorte” talvez, a nosso favor, o vento não era forte naquela altura!
Regámos tudo, a casa do meu avô, os meus pais a casa deles e a minha madrinha e o meu primo a deles claro, quando passado um tempo não sei agora precisar quanto, apareceram três carrinhas da Força de Intervenção da GNR, pararam na estrada, subiram ao terraço onde estávamos a regar as coisas e com uma agressividade estonteante, ordenaram que saíssemos imediatamente dali! Não ficava ninguém! Naquele momento digo, senti-me na pele de um qualquer arruaceiro!
Depois de tentar acalmar os ânimos que entretanto estavam já exaltados, lá consentimos em sair. Fomos no nosso carro e os meus pais no deles.
Saímos da nossa aldeia, sem meios de combate no local, sem ninguém…. E enquanto percorria a estrada a caminho de Pedrógão (a ordem era ir para a Santa Casa da Misericórdia), sentia um nó na garganta e um aperto enorme no coração! Lembro-me de pensar: “Meu Deus, meu Deus, a ti deixo entregue as nossas casas!” E foi Deus o único bombeiro, penso eu!
Chegados á Venda da Gaita parámos, o meu primo também, a minha madrinha tinha ido na ambulância, estava muito agitada, perturbada! Uma amiga minha, que também está na Junta, disse-nos para irmos jantar, comer qualquer coisa, no “tasco” da mãe que fica á beira da estrada, na Tojeira, havia lá refeições para quem, como nós precisava. Já deveriam passar das 20:00h. Aceitámos, apesar de ninguém ter fome, fomos buscar a comida e comemos em casa da minha sogra que era a caminho.
Dali fomos logo para Pedrógão, ter com o meu avô. Ainda passámos no Centro de saúde, a perguntar, onde nos disseram, que tinha ido para o Lar. Fomos lá, onde nos informaram, que ele estava lá dentro e nos indicaram o caminho, mas estava um pouco agitado e ansioso, a perguntar pelas filhas e neta, então uma psicóloga da Cruz Vermelha já tinha falado com ele.
Quando chegámos ao pé dele, disse-lhe: “Então avô, já estamos aqui, estamos todos bem, eu não lhe disse que vínhamos ter consigo? Deu-lhe um beijinho na cabeça, com uma festinha”. Ele olhou para nós todos e chorou!
Ali, estava já muita gente, que tinham sido evacuadas de outras aldeias, havia pessoas lá dentro sentadas, em cadeiras, (as mais idosas), até cãezinhos eu vi lá presos com um cordelito, a uma pata da cadeira.
 Cá fora o cenário era também caótico, com pessoas deitadas em cima dos muros, ou no chão….
Fomos entretanto, a casa da Céu ver os nossos meninos, estavam bem! Estavam entretidos! Só ficaram mais cabisbaixos, quando sem querer até, falámos na morte da filha da Gina, a Bianca de 3 anos. Optámos por deixa-los lá a dormir. Estava preocupada com as casas na Derreada, se estaria tudo bem e queria lá voltar.
Depois de irmos novamente á Santa Casa, falar com os meus pais e ver se o avô estaria bem, falei com a minha irmã que me disse que tinha conseguido saber através do facebook que já não havia perigo na Derreada, disse ao meu marido, que queria ir lá ver como estavam as coisas e fomos!
Devo dizer, que tal como saímos, sem ninguém, também fomos até á aldeia, sem que alguém nos impedisse. Á medida que nos aproximávamos, a ansiedade aumentava e pensava, como estariam as coisas? Será que tinha ardido alguma casa? Mas não, Graças a Deus!
Entramos, passámos no meio da aldeia e saímos, vimos que nenhuma casa tinha ardido, apesar de ainda haver alguns focos a arder.
 Fiquei depois a saber, que tinham ficado lá algumas pessoas “escondidas” dentro das casas aquando da evacuação compulsiva! E também soubemos que na serração também tinham ficado lá com um bombeiro e um carro que não tinham deixado sair de lá. Foi no caso concreto da nossa casa, a nossa “sorte”.
De volta ao Lar e já mais descansada, fui dizer aos meus pais, madrinha e primo, que tínhamos lá ido (eles não sabiam) e que descansassem, estava tudo bem, nenhuma casa ardeu!
Depois disto, disse aos meus pais e eles foram connosco para minha casa descansar um pouco. Pouco, porque eram 02:00 horas da madrugada, quiseram ir para casa, compreendi-os e lá foram. Nós ficámos! Foi nesta altura que me deitei para conseguir dormir alguma coisa, pouca, porque custou a fechar os olhos e logo o despertador tocou, para me dizer que tinha que ir trabalhar. O meu marido ficou em casa, levantei-me “ atabalhoadamente, ainda zonza!! Mas tinha que ser! E o que tem que ser tem muita força! Pensei….
No caminho para Figueiró dos Vinhos, pelo IC8, fiquei em choque……á medida que ia avançando, não via nada á minha volta, ao longo de 17 Km, que não fosse preto! Tudo preto! Um cheiro intenso a queimado, fumo, ainda muito fumo! E sem dar conta as lágrimas já escorriam pela minha face. Pensava, meu Deus, não há vida aqui, só morte! Nem plantas, nem animais, tudo morreu….Nem fauna nem flora! Foi um caminho muito difícil de percorrer naquela manhã de segunda – feira, dia 19 de Junho de 2017!
De repente lembrei-me “ a minha mãe faz anos hoje!”, mais logo tenho que lhe ligar, devem estar ainda a descansar!” Pensava eu que o pior tinha passado! Mas o pior ainda estaria para vir!
Chegada ao meu local de trabalho, nada podia fazer, pois não havia electricidade, comunicações, nada! Mas tínhamos que ficar eu e outro colega de Pedrógão. Apenas o meu telemóvel conseguia funcionar.
Ainda tentei ligar á minha mãe, mas já não me lembro se consegui falar com ela ou não, sei que estava para ir almoçar, quando recebo uma chamada da Lígia da Derreada e fiquei logo assustada, “O que queria ela?” e tinha razão. Disse-me que o Pedro vinha para casa com a minha madrinha e o meu avô e tiveram um acidente na reta dos Escalos Fundeiros, mas ela não me sabia dizer mais nada, estava ao pé da minha mãe, que também não sabia nada.
Tremi, fiquei imóvel, a tentar raciocinar o melhor que podia e conseguia.
 Liguei ao Pedro e nada, não tinha rede. Falei entretanto com a minha irmã, que também ficou aflita, liguei ao meu marido e pedi-lhe que tentasse saber deles, como estariam. Enquanto não sabia de nada lembro-me de pensar e rezar: “ O que estará mais para acontecer? E pedi, meu Deus, se tiveres que levar alguém, que não seja o meu primo nem a minha madrinha!”
Passada uma hora talvez, de várias tentativas de telefonemas, a minha irmã disse-me que já sabia que o Pedro estava bem e que o meu avô e madrinha tinham ido para Coimbra. Pouco depois ligou o meu marido, que me disse que no Centro de Saúde, lhe disseram que eles tinham lá passado, mas que iam os dois pelo pé deles, que tinham ido por precaução fazer exames, mas que mais logo já podia ir busca-los, aqui respirei fundo, de alivio., afinal estava tudo bem! Liguei á minha mãe que estava ao pé do Pedro, que estava bastante transtornado, mas bem. Disse, que mais logo iam lá ao hospital para busca-los! Ainda passaram pela fábrica do meu pai.
À tarde lá foram. Eu descansei um pouco, no fim do dia tive de ir á Sertã tratar de umas coisas de trabalho e como a minha mãe fazia anos pensei em levar uns frangos assados e comíamos todos lá em casa quando viessem de Coimbra. Ao menos para lembrar o seu aniversário!
Já na Sertã, o meu telemóvel não parava de tocar, a perguntarem pelo avô e madrinha. A minha mãe tinha-me dito que estavam a fazer exames, mas estavam bem, o meu avô também estava bem.
A Daniela também vinha de Abrantes, então era perfeito, jantávamos todos lá em casa, quando saí comprei os frangos e também um bolo de bolacha. “Ao menos um bolito” pensei.
Já em casa com a Daniela e marido, passava das 20:00 horas, quando a minha mãe ligou, a madrinha tinha alta, mas o meu avô ainda ficava porque estava a fazer “uma ponta de febre” e ia fazer mais alguns exames.
Ok, pensei “Então venham andando que eu vou pondo a mesa, já cá está a Daniela”, disse.
Passados talvez uns 15 minutos ou nem tanto, liga-me o Pedro e eu não estava a perceber nada do que ele dizia, perguntei, uma vez e outra e ainda outra: “O quê? Não estou a perceber!” E então ouvi, percebi bem o que eu não queria e não esperava ouvir: “ligaram agora do hospital, o avô faleceu”
Deixei-me cair no sofá que estava atrás de mim e fiquei ali sentada, com o telefone colado ao ouvido e as lágrimas a correrem uma atrás da outra, copiosamente…. Acho que todos acabaram por entender o que se passava.
Finalmente desliguei o telefone e consegui dizer: “o meu avô faleceu”.
Ficou um silêncio tão grande na minha sala, apenas olhávamos uns para os outros, chorávamos, e no olhar de cada um podia ver a pergunta: “mas como? Como?”, Também agora os meus meninos choravam, cabisbaixos, o meu marido ligou á minha sogra e foi lá levá-los.
Seguiram-se uns telefonemas difíceis, para o meu tio, irmã, primos, para o Sr. da funerária…enfim! Quando chegaram, lá comemos o frango, porque o bolo, esse esteve oito dias no meu frigorífico, sem que conseguisse abri-lo.
 Acabou no caixote do lixo!
 Foram todos embora, porque só no dia seguinte é que poderíamos ir levantar o corpo e como ninguém quis (porque não eram capazes) ficou combinado que de manhã cedinho iria eu com o meu marido e o Sr. Carlos da funerária.
Já na minha cama, a noite foi difícil, dura …..
De manha lá fomos, devo dizer que foi das coisas mais difíceis que já fiz na minha vida.
Chegados á casa mortuária do hospital, não deixaram levantar o corpo, tinha que ser ouvida no DIAP, disse o Sr. Carlos. Como? Sim, como tinha dado entrada como consequência de um acidente, teria de ser autopsiado e o que deveria eu dizer lá? Que não queríamos que ele fosse autopsiado, claro, senão quando nos iriam devolver o corpo, com tantos corpos que lá estavam vitimas do incêndio?
Lá fomos, a espera foi terrível…… uma hora talvez, eu estava á beira de um ataque de nervos, mas não podia mostrar! O que mais fiz durante esse tempo? Rezava, no meu íntimo rezava e pedia ao Espirito Santo que me iluminasse com a sua Luz e eu soubesse dizer as palavras certas.
E assim foi, lá fui ouvida, durante 45 longos minutos! Depois esperei mais 15 minutos e lá veio a resposta: “ A procuradora dispensou a autópsia”.
 Quando sai de lá, as minha pernas ainda tremiam, toda eu tremia e pensei “Foi a ultima coisa que fiz por ti avô”.
Passámos para a etapa seguinte, fomos para o Hospital para levantar o corpo, finalmente. Já lá estavam os meus pais, o meu tio e primos, depois tive que ir lá dentro reconhecer o corpo do meu avô….Apenas olhei para ele ali deitado, o senhor perguntou-me: É este senhor? Ao que eu respondi que sim, era. Dei-lhe um beijo na testa fria, gelada e sai em lágrimas!
O que se seguiu foi um velório triste, muito triste, mais triste que o normal….por causa do incêndio, que ainda andava a lavrar perto da Derreada.
O Sr. Carlos ainda fez “força” para que fosse em Pedrógão, mas nós não quisemos, já era suficientemente mau que tivesse falecido fora da sua casa, ainda teria de ser velado fora da sua terra? Não, nós não quisemos! Apesar dos constrangimentos e de estradas cortadas, a GNR a pedir que nos juntássemos no largo da aldeia para o caso de ser preciso evacuar novamente as pessoas, mas nós não aceitámos sair dali e lá ficámos.
Agora, passados que estão 25 dias do início de toda esta tragédia, ainda não desapareceram da minha memória todas estas imagens e vai demorar!
E todos os dias, passo naquele IC8 e vejo aquele cenário dantesco….. Aquela escuridão!
Mesmo que queira esquecer não consigo!
Mas as más notícias não tinham terminado, no dia do funeral do meu avô, já todos tinham ido embora, deitei-me na minha cama para tentar dormir um pouco…. Toca o telemóvel, era a professora de música, a Ana, que me disse: “Dora tenho uma má notícia para te dar, faleceu o professor de trombone do Edgar, o professor Jaime, num acidente de carro, foi agora mesmo!” Sentei-me num ápice na cama, acho que fiquei uns segundos em silêncio a tentar “absorver” a triste noticia e pensei: “Mas quando é que isto acaba?”.
 Nesse dia não tive coragem de contar ao Edgar, disse ao meu marido e concordámos em esperar mais uns dias …..É muita coisa para uma criança de 11 anos!
No entanto, no dia seguinte já todos me diziam que tinha morrido o professor dele….Então achámos melhor contar-lhe. Primeiro disse-lhe que tinha tido um acidente muito grave e estava muito mal, no dia seguinte é que lhe disse que ele tinha falecido.
O que é que nós fazemos quando o nosso filho de 11 anos recebe uma notícia destas e se abraça a ti a chorar? E quando já no outro dia, estás a trabalhar, liga a tua sogra e te diz que não sabe o que fazer porque o Edgar está deitado no sofá, só chora, não quer brincar, porque morreu o professor dele? Senti-me tão impotente! Nós conseguimos aguentar a dor, o sofrimento…..Mas e as crianças? Sim eles também aprendem a crescer assim, mas doí tanto vê-los sofrer!
E foi esta a pior semana da minha vida! Sem dúvida.
Todos os dias oiço histórias terríveis, de pessoas que conheço bem, clientes da Caixa que passaram por situações absolutamente dramáticas, de como escaparam fechados na dispensa, por baixo das escadas, a rezar ou deitado com a mulher já desmaiada debaixo de uma manilha de cimento. Pessoas que perderam os seus entes mais queridos, um que perdeu a filha com apenas três anos, a esposa em Coimbra queimada, ou a Susana que me diz, que esteve sempre a falar com a mãe e lhe pediu para vir para o pé dela e acabou por os perder a todos, a mãe, o irmão, a cunhada e o padrasto! Todas pessoas que eu conhecia! São relatos na primeira pessoa, não são lidos num qualquer jornal, revista ou facebook, são contados pelos próprios protagonistas desta infeliz e triste, muito triste história!
Depois dou por mim a pensar: “ Meu Deus, a minha dor é tão pequenina, quando comparada com estas pessoas!” Mas não sei porquê não “apaga” o que continuo a sentir…. Não tenho vontade de rir, de brincar, de nada…. Sinto uma tristeza tão grande!. Não só porque perdi, assim de repente, sem esperar, o meu querido avô, mas também porque todos os dias, vejo a escuridão á minha volta e oiço as histórias de quem ficou, de quem perdeu tudo, só ficou com a roupa que tinha, como a Anabela com 2 filhos, o marido e a mãe.
Já ofereci ajuda a todos eles, mas isso também não me faz sentir melhor…. Não sei porquê! Só ainda não consegui ir ver a Gina…..Acho que iria ser uma péssima visita! Talvez um dia consiga falar com ela e dizer-lhe que terá que arranjar forças para continuar!
Escrever faz-me sentir melhor, por isso decidi, que ia escrever a minha experiência, tudo o que vivi e que ainda está bem presente na minha memória.
 Só porque sim, só para mim, talvez…. Não sei.
Entretanto vou de férias e talvez quando voltar, me sinta melhor! Com mais força de acreditar que NÓS VAMOS RENASCER! Pelo menos tenho essa esperança!

Por Dora Santos Rodrigues
Pedrógão Grande, 12 de Julho de 2017

Carla Santos Ramada