Corria
o ano de 1927, o tempo ia muito frio, Fevereiro estava a terminar e a serra
estava coberta por um manto branco.
Anoitecia
cedo e os passos de António Vadio, assim era conhecido na aldeia, já se ouviam
a derreter a neve do caminho.
Plock!!Plock!!
Plock!! Pedrinhas a bater na janela do quarto da Mariazinha.
-
Chiuuu!!! Queres acordar o mê pai – segredou por entre a janela entreaberta.
-
Anda!!! Bimte buscar coração…
-
Estais bom dessa cabeça? Como queres que saia daqui home?
-
Sim, eu sei que sou o teu home mas nã ma deixes assim avespedo sem ti.
-
Aespera por mim ai imbaixo faxavore … e calado.
O
rapaz virou costas a esfregar as mãos de contente, já andava de namoro com a
rapariga “mai” linda da terra fazia um bom par de meses e ainda nem um beijinho
lhe tinha conseguido roubar.
A
moça abeirou-se dele com um sobretudo e um xaile pela cabeça, mas aqueles olhos
verdes reluziam na noite escura.
-
Tava a ver que não, posso ta dar um beijinho? Oh vá lá coração…
-
Escusas de fazer beicinho que já te disse que daqui nã levas nada até me prometeres
que vais falar cô mê pai pra gente casar.
-
Já disse que falo, mas agora a modos que nã é boa ideia né? Nã disseste que ele
andava todo enxofrado por casa que o tê irmão lha tinha arranjado uns sarilhos
com a filha do zé da venda?
A
rapariga encolheu os ombros.
-
Pois, antão ficamos aqui a conversar um bocadinho e prontos.
Naquela
aldeia plantada no alto da serra a vida não corria, deslizava lentamente ao
sabor do tempo.
Quando
chegava a sexta-feira era dia de amassar a farinha para fazer as broas no forno
e todas as telhas das casas transpiravam o fumo quente que deixava no ar o
cheirinho a pão acabadinho de cozer.
A
Mariazinha estava numa dessas tardes a amassar o pão quando a mãe se abeirou da
porta de madeira entreaberta:
-
Filha, a mãe já volta, vou com a ti Soldade do lugar à capela, parece que se
passa pra lá quaisquer coisa.
Antes
que a rapariga pudesse responder a mãe já tinha desaparecido pela porta do
quintal.
-
Antão o que se passa praqui?
-
Ai voçemessê ainda nã sabe?
-
Ora se istô a precurar …
-
A ti Maria mais a ti Conçeição istão as duas ali adentro da sacristia a rezar,
dizem que viram um sinal e que o mundo vai acabar…
-
A modos que ódespois de amanhã já cá nã está ninguém.
-Ora
esta?? Querem lá ver que as beatas ficaram malucas de vez?
As
outras mulheres benzeram-se perante aquela frase que soava a blasfémia.
-
Nã digas isso Fernanda, Deus inda te castiga….
-
Queres ver que já nã passo desta nôte??
O
grupo de mulheres que se ia amontoando dentro da pequena capela, estava
indignada com a descrença da vizinha.
Aos
poucos a mulher foi-se convencendo do que as outras contavam.
As
beatas, de joelhos uma de cada lado do altar e com um véu branco (sinal de
pureza claro está…) rezavam ferverosamente uma ladainha difícil de perceber,
até para os mais crentes.
A
mais velha ergue-se do chão de pedra com os joelhos já quase em ferida e de
braços abertos:
-
Em nome de Deus todo- poderoso, peço-vos que trazeis para a casa do senhor
todas as pessoas, algo terrível vai acontecer antes do amanhecer, todos tem de
confessar os sês pecados pra entrarem puros no céu.
Gerou-se
um burburinho e as mulheres começaram a correr cada uma para seu lado
desorientadas.
A
noite começava a cair e o vento frio já assobiava nos pinhais.
-Maaaaria!!!!
Berrou a dona Fernanda exaurida no meio do Páteo.
-
Aiii!!! Que foi mãeeee, ca desassossego é esse?
A
rapariga assomou à porta da casa da lenha onde se cozia a primeira fornada de
pão.
-
Anda daí, tens de vir comigo pra capela.
-
Mas o quêii? Ora agora???
-
Nã faças perguntas, tira o avental e calça os sapatos de Domingo.
A
moça assim fez, ainda que contrariada.
-Ãntão
e o pai?
-
Esse há-de dar conta de nós na capela, nã te rales.
Saíram
ao portão para fora sob o olhar atento do António Vadio, que esperava uma
oportunidade para estar com seu amor.
Não
sabia o que se estava a passar, mas o sino da aldeia começou a tocar e as duas
mulheres começaram a correr ladeira acima, ele seguiu-as.
A
Mariazinha foi empurrada pela mãe para dentro e quase não se conseguiam mexer,
parecia o metro em hora de ponta – muitos anos à frente e já no novo mundo com
certeza.
As
duas mulheres continuavam no altar a dizer que estavam ali como representantes
de Deus, enquanto uma dizia que era o anjo São Gabriel a outra dizia que era o
arcanjo São Rafael.
Todos
tinham que se confessar e perdoar os pecados uns dos outros senão iam arder no
lume do inferno.
As
crianças pequenas choravam de fome e de sono ao colo das mães - sem perceberem nada
do que acontecia.
Os
jovens casais abraçavam-se e prometiam amar-se até à eternidade - que seria já
ao amanhecer.
O
Ti Manel da mercearia disse que perdoava todas as dívidas se o mundo acabasse -
porque senão tinham de pagar na mesma.
Ouviu-se
a coruja a cantar, o céu ficou escuro como bréu e todos começaram a rezar
abraçados uns aos outros – todos, menos o António, esse que tinha Vadio no
nome.
A
Mariazinha alcançou António com os olhos, estava especado na porta da capela.
Ficou
num desassossego, deixou de ouvir as rezas das beatas e muito menos as
recomendações da mãe.
Enquanto
toda a gente parecia que estava a entrar em transe, os dois pombinhos não
conseguiam desviar os olhos um do outro.
Após
uns olhares e uns sorrisos maliciosos a moça foi-se desenvencilhando dos braços
da mãe e de repente sentiu uma mão forte a agarrar-lhe o braço.
-
Que estás a fazer Tónio? Estás doido?
-
Chiu!!! Anda comigo!
Tentou
arrancá-la da porta da capela, mas a rapariga vacilou.
-
Como queres que sai daqui? Nã percebeste o que está pracontecer home??
O
rapaz era astuto e percebeu que tinha ali a sua oportunidade.
-
Sim, ê percebi muito bem, Deus é nosso amigo e fez aquelas beatas ficarem
malucas da cabeça pra nóis ficarmos juntos, melhor só mesmo nos filmes.
-
Ai credo (benzeu-se três vezes), nã digas isso que Deus castiga.
António
puxou-a contra si e encostou a boca ao seu ouvido.
-
Nã me digas que nã queres estari aqui com o tê Tónio? Susurrou.
Ele
sentiu o corpo da amada tremer e os seus olhos verdes reluziram fixando os
seus.
Correram
os dois de mãos dadas pela noite escura, a rapariga passou os sapatos dos pés
para as mãos e descalça, desceram a ladeira que há pouco tinha subido com a
mãe.
O
seu vestido de chita verde- esmeralda como os seus olhos, balouçava de contente
e o seu xaile levantava voo.
Mariazinha
deixou-se guiar pelo amado.
O
rapaz escancarou a porta pesada de madeira do palheiro e mergulhou com ela na
escuridão do casebre.
-
Mas home e se o mundo for acabar e nóis istamos praqui??
-
Ai mulher vais veri, que o mundo vai mas é começari agora.
-
Espera Tónio, e se a minha mãe dá conta de mim? Fico perdida e ósdespois
ninguém me quer…
Antes
que conseguisse dizer mais alguma coisa (sim porque o rapaz estava com pressa,
não fosse o mundo acabar mesmo e ele ficar à mingoa) enrolaram-se os dois no
meio da palha e enquanto os sinos tocavam a repique, a Mariazinha via estrelas
cadentes por entre as traves de madeira do casebre.
O
mundo não tinha acabado, estava apenas a começar e este era apenas mais um
capítulo do filme das suas vidas.
Carla Santos Ramada
In "Saloios & Caipiras"
Sui Generis -2017