terça-feira, 11 de outubro de 2016

Mãe (Des)complicada

Depois de um dia da trabalho, uma aula de Zumba para gastar energias, ou melhor absorver todas aquelas energias positivas.
Chego a casa parecendo que vim à chuva, mas não.... estou mesmo toda pegajosa e sabe tãoooo ver aqueles braços abertos, prontos para se lançarem no meu pescoço e quase me derrubarem ao chão.
E eu deixo-me abraçar e beijar pelos meus filhotes, que me arrastam para o quarto para me contarem como foi a escola e como se portaram bem..... e nem me importa o facto de ainda ter a roupa colada ao corpo....
É por isto que eu acho que, para além de ser mãe (que amo de paixão) sou mulher e preciso de ter um tempo para mim, para me revitalizar, para fazer aquilo que gosto. Ao fazer isso, liberto-me e torno-me uma mãe mais disponível, com mais paciência, uma mãe melhor,
Um dia vou dançar, outro vou ao cinema com o marido, no dia a seguir vou passear com os filhotes.... preciso de ter este equilíbrio na minha vida.
Só assim consigo ser melhor mãe, melhor esposa e melhor profissional no trabalho, porque me sinto equilibrada, caso contrario atrofiava.
Não quero ser uma mulher mal disposta, uma mãe sempre chata ( ás vezes é preciso!!!) e uma esposa rabujenta.
Se calhar sou uma mãe descomplicada, que já viveu momentos complicados, mas espero conseguir preservar isso em mim - Mãe descomplicada, filhos felizes....

Carla Santos Ramada
11 Outubro 2016

domingo, 11 de setembro de 2016

Nhaíla - A menina coragem


Correu desenfreada, descalça pelo chão de terra, com os cabelos soltos ao vento agreste do fim do dia.
Quando já não tinha mais forças, deixou-se cair naquela terra avermelhada, como o sangue que agora lhe corria com tamanha intensidade nas veias, parecia que ia rebentar.
Tinha ouvido perfeitamente bem, a proposta que ouvira, incluía vendê-la ao homem das barbas e este assegurava que o resto da família chegava em segurança à Europa.
O que deveria fazer, aceitar o seu destino, entregar-se aquele homem muito mais velho e garantir que a sua família conseguiria começar uma vida nova na Europa? Ou desaparecer e procurar ela uma nova vida longe de todos?
Ficou ali, deitada no chão, tipo boneca abandonada.
Deve ter adormecido, pois acordou com os primeiros raios de sol a bafejarem o seu rosto de tês morena e custou-lhe despertar para a realidade em que se encontrava.
Era ainda muito cedo, o sol estava a despontar no horizonte ainda em tom alaranjado. Nhaíla levantou-se decidida, ajeitou a túnica verde e bordada a dourado, sacudiu-lhe o pó e amarrou o cabelo com o elástico que trazia no pulso, tinha tomado uma decisão, já tinha quinze anos e não ia ser moeda de troca.
De regresso à sua tenda, encontrou todos em sono profundo, deviam ter adormecido tarde, pois deviam ter andado à sua procura - pensou e sorrateiramente, retirou umas moedas da bolsa que o pai trazia sempre presa à cintura, colocou algumas peças de roupa numa sacola de pano e retirou um lenço preto da mãe. Depois colocou o lenço em volta da cabeça, a sacola a tiracolo juntamente com um cantil de água, uns bolos secos e um pão - agarrou na viola, deitou um último olhar triste aos irmãos e aos pais e saiu da tenda.

Enquanto caminhava com uns chinelos a calcar a terra batida, limpou uma lágrima teimosa do rosto e seguiu caminho, tinha de alcançar Portugal e encontrar Pedro.

Carla Santos Ramada
Julho de 2016

domingo, 14 de agosto de 2016

O Flagelo dos incêndios

Já sabia pelos media e por me encontrar na região centro (também assolada pelo mesmo flagelo), que Portugal se encontrava a arder, mas só quando começei a percorrer a estrada do centro para o norte do país é que percebi efectivamente o inferno das chamas em que o nosso pequenino Portugal estava mergulhado.
Fazer aquela viagem foi devastador.
Circular na A1 de Coimbra até ao Porto foi uma hora assustadora, não estava à espera de viver tal cenário, teve de se circular com as luzes ligadas, a paisagem na zona de Aveiro, outrora aprazível e verdejante, com os ninhos das cegonhas instalados nos postes desaparecera, em vez disso, fumo, muito fumo, colunas de carros de bombeiros a circular..
O cheiro a queimado era mais que muito, mesmo com os vidros todos fechados, tornava-se quase insuportável.
Não entendo, como podemos estar a passar por tudo isto, ou se calhar até entendo!!!
È triste, muito triste.
As férias podiam ser diferentes? Podiam, mas é impossível ficar indiferente a tanta devastação e tanto sofrimento.

Carla Santos Ramada
"Desabafos"
14 Agosto 2016

terça-feira, 12 de julho de 2016

O dia ao contrário




O dia começou como sempre às 6.30 da manhã, o despertador do telemóvel não falha, desgraçado.
Como de costume, entro em piloto automático, coisa que agora tenho a certeza é uma capacidade exclusiva das mulheres.
Tinha um monte de coisas para fazer, para variar. Despachar as crianças para a escola, apanhar os transportes para o trabalho (sim, vários transportes), sair antes de almoço para ir a uma consulta ao hospital, voltar para o trabalho, mas antes almoçar qualquer coisa pelo caminho, sair mais cedo para ir á reunião da escola do pequeno, depois sair directo para a natação da miúda e pelo caminho passar pelo pão. Regressar a casa depois das oito da noite, para dar banhos, ajudar nos trabalhos da escola, tratar do jantar e reencaminhá-los para a cama… há!! É verdade, a roupa, ainda existe um cesto de roupa á espera para se lavar e outro para arrumar…
Canseira só de pensar nisto tudo enquanto estou no banho. Sim, sim, enquanto se toma banho, faz-se uma revisão mental á agenda do dia.
Saio de casa já a correr para apanhar o comboio e ao chegar á estação dou de caras com um cenário surreal, pessoas a correr desnorteadas por todo o lado, crianças a chorar e a gritar pelas mães. Fiquei imobilizada, ainda a tentar assimilar tudo aquilo.
Fui andando devagar e tentei chegar a uma das bilheteiras, na esperança de perceber o que se passava, havia fumo no ar e cheiro a pólvora seca, estremeci ao ver bem á minha frente um homem armado, empunhava uma arma que percebi logo era bem real, percebi que me olhou mas tentei desviar o olhar e sair dali.
O meu coração parecia que me saltava da boca, só repetia a mim mesma, “ tens de sair daqui”.
Virei costas e desatei também eu a correr, desnorteada como todas as outras pessoas, o instinto de defesa é um denominador comum a todos nós.
Não sei quem eram aquelas pessoas armadas, nem o seu propósito mas escolheram muito mal o dia, eu tinha tanta coisa para fazer, estava toda arranjadinha e o pior, estava de saltos altos (dá sempre um ar mais apresentável quando se tem reuniões e quer se queira quer não a nossa sociedade ainda vive de aparências).
No meio da correria esbarrei com um senhor e estatelei-me no chão, azar dos azares, fiquei aos pés de um dos fulanos que estava armado. Gelei.
 Pela primeira vez na vida fiquei sem reacção alguma, só pensava: O que me queriam! mas o melhor seria cooperar.
Fui agarrada por uma mão enorme, que sem grande esforço me colocou em pé, sem conseguir pensar, fui arrastada por esse indivíduo das mãos grandes, parecia-me estrangeiro, russo talvez.
Numa questão de minutos que a mim me pareceram eternidades, levaram-me para fora da estação por uma porta das traseiras e nessa altura já eu tinha perdido os sapatos pelo caminho e trazia a minha mala a arrastar o chão.
Deparei-me com outras mulheres todas com o mesmo ar de terror espelhado no olhar, eu deveria estar igual, pensei.
Comecei a aperceber-me que deveríamos ter sido escolhidas, o padrão era o mesmo, só mulheres caucasianas, entre os 20 e os 35 anos talvez, jovens e saudáveis e isso gerou em mim um pânico difícil de explicar. Todo o meu corpo tremia, não sabia o que pensavam as outras mas eu acabara de ganhar consciência do que aquilo significava, estávamos a ser raptadas, só podia ser para tráfico.

Enquanto eu me perdia nestes pensamentos, já estava enfiada numa carrinha, vendaram-me os olhos, retiraram-me a mala e senti o barulho do motor, nesse instante, sentada no chão, no escuro, chorei compulsivamente, pensava não no meu destino, mas no dos meus filhos, o que seria deles sem mim.
Imaginava aqueles pequenos a perguntar pela mãe, vezes sem conta e á medida que o tempo ia passando naquela carrinha, também ia serenando o meu coração.
Só tinha de tentar ser racional, não sabia para onde ia, mas tinha de haver uma maneira de conseguir fugir, era isso, a solução seria, fugir.
Já tinha um objectivo agora só tinha de o colocar em prática mal a carrinha parasse e nos abrissem aquelas malfadadas portas.
Tinha perdido a noção do tempo, de quando em vez ainda ouvia o soluçar das outras mulheres mas nenhuma de nós se atrevia a falar.
Sentia fome, e começava a doer-me a cabeça, - Eu e a minha mania de sair de casa sem tomar o pequeno- almoço, dá nisto.
Não tive tempo de pensar em comida, a carrinha imobilizou-se e comecei a ouvir vozes, falavam russo, não tinha dúvidas.
Senti um calafrio no peito, tinha de arranjar maneira de fugir. A porta da carrinha abriu-se e já vários homens nos puxavam para fora aos tropeções.
Senti o sol de Outono a aquecer-me a face e percebi que a viagem devia ter demorado umas horas, o sol já ia alto.
Sem grandes demoras, respirei fundo e virei-me para um dos homens, soletrei bem devagar:
 - Water, I need water, please??
Achei que não iriam entender português, mas também não tive nenhuma resposta da parte dele, lembro-me de pensar – Este deve ser daqueles, tipo calhau com olhos.
Mas não podia desistir, continuava vendada e estavam a levar-me para algum sítio, tropecei em algumas pedras por isso devia estar a ir para algum sítio mais isolado.
Insisti com o calhau com olhos, o tal das mãos grandes que me continuavam a agarrar:

- Pleeeeaaassseee!!! I need water and I need a bathroom.

Nada, deu-me um puxão ao braço com tal força que gemi de dor e continuámos o caminho.
- Raios!!! São mesmo russos, estou feita. As lágrimas voltaram a visitar a minha face, mas depois o meu coração fez –me ver os meus filhos, respirei fundo outra vez, e outra vez e fiz nova investida.
Fiquei inerte, os pés sujos e doridos de andar, presos ao chão, ele voltou a puxar-me o braço, mas aí eu já estava preparada, rangi os dentes e disse, desta vez em português, mais alto e com a voz mais firme que consegui fazer:
- Eu preciso de uma casa de banho, ou me levam a uma ou vou fazer aqui!!! Posso??
Fiz o gesto de me baixar, como se me fosse sentar na sanita, e desta vez fui eu que dei um puxão no calhau com olhos, obrigando-o a baixar também.
Ficámos parados, e voltei a ouvi-los falar, apesar de não perceber nada, o facto de termos parado já era um bom sinal, pensei para os meus botões.
Voltámos a andar e senti que virámos á direita, fizeram-me entrar num sítio, devia ser antigo pois ouvi uma porta a ranger, de seguida subimos umas escadas e de repente, tiraram-me a venda e desataram-me as mãos.
Os meus olhos piscaram, com a luz ténue que recebiam, pobrezitos, estavam há muito tempo na penumbra.
O primeiro impacto foi brutal, estávamos todos numa sala, com duas janelas com portadas de madeira velha, já sem vidros, não existia mobiliário algum e o chão de madeira já carcomida pelo tempo, indiciavam que estava num prédio abandonado.
-Oh meu Deus! Onde é que eu estou. Senti o pânico de novo a tomar conta de mim, as outras estavam igualmente estarrecidas, conseguia perceber isso pelo seu olhar.
-Não! Não! E Não! Vamos lá manter a calma Margarida., pensa nos teus filhos, tens de voltar para eles.
Eram a minha constante motivação, às vezes pensava se todas aquelas mulheres também teriam uma motivação assim tão grandiosa para conseguirem fugir daquele destino.
Os meus olhos, ainda estremunhados, como se tivessem acabado de acordar, passearam-se pela sala, vi uma porta aberta ao fundo e tínhamos quatro carrascos de arma em punho e de caras destapadas a olhar para nós.
Um deles apontou com a arma para a dita porta, que estava escancarada. Fui das primeiras a avançar, aquilo era a luz verde que eu precisava.
Eles começaram a empurrar as outras mulheres para me seguirem, denotei que deviam estar com pressa, o que só podia indicar que aquilo era um ponto de passagem.
Mal me aproximei da porta, o cheiro nauseabundo quase que me fez vomitar, nem sei se chamaria aquilo de casa de banho.

Entrámos todas a monte, empurradas pelas armas dos homens, algumas começaram a aliviar a bexiga sem se preocuparem em encontrar a sanita, eu fiquei mais preocupada em verificar se aquele cubículo mal cheiroso teria alguma janela que desse para a rua.
Havia de facto um janelo pequeno por onde entrava o sol envergonhado e uma ligeira brisa, era aquela a brisa da liberdade, pensei.
No meio da confusão de mulheres a tentarem fazer as suas necessidades, achei que se eu tentasse pular o velho autoclismo e saísse pelo janelo, eles não dariam logo por minha falta, tinha de tentar.
Passei por entre as outras e elas que me perdoem, mas aqui era mesmo o salve-se quem puder, e alcancei o janelo.
Assim que coloquei a cabeça de fora, percebi o burburinho que tinha gerado entre as outras mulheres e percebi que não tinha muito tempo até eles perceberem que algo se passava.
Aquela janela pequenina, mas que para mim significava voltar á vida, dava para a escada de incendio, talvez eles não conhecessem o prédio e só fizeram aquela paragem para me sossegar, e ainda bem, neste caso tinha de aproveitar os erros dos outros.
Estava num segundo andar, corri pelas escadas de incêndio sem olhar para trás, estas abanavam e senti que podiam cair a qualquer instante, mas como estava descalça também não fazia barulho, pelo que era uma vantagem e alcancei o chão num ápice.
Corri, corri sem direcção, sem norte, apenas uma coisa latejava na minha cabeça, ir para bem longe, sair dali.
Parei quando me deparei com uma avenida grande e movimentada, já não tinha mais fôlego, sentia-me a desfalecer, sem forças, mas ainda assim, alerta.
Olhei para todos os lados, qual animal a fugir do seu caçador, não vislumbrei nem carrinha nem homens armados.
Nesse instante deixei-me cair no passeio, encostei-me a uma parede e chorei como uma criança, tinha conseguido fugir daquele inferno, podia voltar para casa, para a minha família e as minhas crias.
Depois percebi que não sabia sequer onde estava, não conhecia aquele sítio, as pessoas passavam apressadas e nem reparavam em mim.
Triste realidade aquela em que me encontrava, descalça, suja, sem mala, sem dinheiro, sem telemóvel, como iria sair dali.
Quase sem forças para me levantar, os pés doridos, o estômago colado ás costas, olhei para mim, como era possível, tinha-me transformado numa sem abrigo, era invisível a quem passava.
Respirei fundo, engoli em seco, a boca áspera ansiava por umas gotas de água, mas primeiro tinha de perceber onde estava, pensei, depois as necessidades alimentares e fisiológicas.
Começei a olhar as placas e li numa delas, “Torre dos clérigos”, fiquei de boca aberta, estava no centro do Porto.
Pensei em levantar-me mas as minhas pernas não acompanhavam os meus pensamentos, não tinha forças.
Passaram por mim uns miúdos a comer hambúrgueres e até me veio água á boca, já deviam ser mais do que horas de almoço.
Tinha de me fazer á vida, não podia ficar ali sentada á espera que me encontrassem. Perdi a vergonha e perguntei a um senhor que passava que horas eram, a resposta veio seca e sem sequer parar, “ são 13.30”.
O meu estômago tinha razão, eram mais que horas de comer, como iria conseguir isso se não tinha dinheiro?
Estendi a mão, baixei a cabeça com vergonha, e deixei-me ficar ali, não tardou muito caíram as primeiras moedas, mas tive de esperar muito tempo para conseguir dois euros.
Levantei-me a custo ajudada pela parede que me suportou aquele tempo todo e comecei a andar, a zona parecia antiga e pensei que talvez fosse fácil encontrar uma fonte onde pudesse matar a sede, mas nada, definitivamente, hoje não era o meu dia.
Resolvi interpelar uma rapariga que vinha com o namorado e perguntei se sabia onde havia uma fonte para eu poder beber água pois não tinha dinheiro para comprar (achei que não valia de nada eu tentar contar a minha história, pois era tão bizarra que ninguém acreditaria).
Eles olharam-me de alto abaixo e afastaram-se de mim, como se eu lhes fosse pegar alguma coisa e depois ela foi com a mão ao bolso das calças e deu-me uma moeda e seguiram caminho rapidamente.
Bem, achei melhor tentar comprar uma garrafa de água e alguma coisa para comer, entrei no primeiro café de esquina que encontrei e assim que cheguei ao balcão o empregado disse-me:
- A senhora não pode estar aqui, pedir é na rua.
Acho que só nessa altura é que tomei consciência da situação em que me encontrava.
Um mendigo, sem abrigo, que toda a gente quer ver bem longe da sua porta.
Olhei o senhor nos olhos e disse:
- Desculpe, eu tenho dinheiro e ainda não cheiro assim tão mal, acha que posso fazer o meu pedido?
O empregado limitou-se a perguntar o que queria e pediu-me o dinheiro. Pedi um café, um bolo e uma garrafa de água das pequenas.
Serviu-me as coisas ao balcão, deu-me vinte cêntimos de troco e disse “Passe bem”.
Entendi que se não queria chatices o melhor seria comer na rua mas ainda me atrevi a perguntar se podia ir á casa de banho.
Ele lançou-me um olhar reprovador mas perante o olhar dos outros clientes lá acedeu.

Ganhei outro alento, depois de fazer a vontade á minha bexiga e satisfazer o meu estômago, ainda guardei o pacote de açúcar no bolso das minhas calças (agora mais brancas que pretas), não sabia quando ia voltar a conseguir comer e um pacote de açúcar podia dar muito jeito.
Posto isto, tinha de puxar pela cabeça e tentar sair dali, tinha de regressar a Lisboa. Mas como ia conseguir dinheiro para comprar bilhete? Só se conseguisse ligar a alguém, mas sem telefone fica difícil.
Deambulei pelas ruas do Porto, pensei o que se estaria a passar com aquelas raparigas que foram apanhadas como eu mas que ficaram para trás. Vi uma esquadra de polícia e achei que podia tentar ir explicar o que me aconteceu, era isso, eles iam ajudar-me a voltar.
O meu rosto iluminou-se como se tivesse ganho a lotaria.
Entrei na esquadra da PSP e dei de caras com um senhor barrigudo e de bigode a ler um jornal do outro lado de um guichê.
- Olhe? Desculpe, boa tarde, pode ajudar-me?
- O senhor pousou o jornal, levantou os olhos para mim e dirigiu-se ao guichê.
Esticou o pescoço para me mirar e resmungou:
- O que queres daqui?
- Eu não sou daqui, sou de Lisboa e preciso de voltar, esta manhã quando ia para apanhar o comboio fui raptada por um grupo de homens e trouxeram-me para aqui mas eu consegui fugir, só que não tenho dinheiro, nem telefone para voltar.
A pergunta seguinte saiu seca:
- Documentos?
- Ouça, não tenho nada, eles ficaram com a minha mala! Insisti mas já sem esperança.
Riu-se ma minha cara, voltou a sentar-se e disse-me para eu desandar dali.
Olhei o relógio velho pregado na parede, marcava quatro da tarde.
Saí de cabeça baixa, os pés a arrastarem-se pela rua, se nem a polícia acreditava em mim, como é que eu ia conseguir chegar a casa.
Ah! Como eu precisava de um abraço do meu marido e dos meus filhos.
A noite não tardava aí e como iria passar a noite numa cidade que não conheço e na rua, impossível de imaginar, nem nos meus piores pesadelos.
De repente vi a placa a indicar os comboios,- É isso! Pensei, vou apanhar o comboio para Lisboa, tenho de conseguir, dê por onde der.
Pus-me a caminho, fui seguindo as placas, já sem me importar com o olhar desconfiado dos transeuntes.
Finalmente a estação, parecia uma miragem, comecei a deambular pelas várias linhas e descobri que o próximo comboio com rumo à capital partia dali a meia hora.
Significava que tinha meia hora para conseguir o abençoado bilhete.
Ainda pensei tentar entrar sem bilhete, mas corria o risco de ser apanhada e depois acabava por perder o comboio. Não dava, teria de conseguir o dinheiro. Mas como?
Entrei na casa de banho da estação e deparei-me com uma mãe atarefada com dois pequenos enfiados na casinha de banho.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas - os meus filhos! estava com tantas saudades deles, senti o meu coração apertadinho.
Mas o instinto de sobrevivência foi mais forte, os meus olhos ainda que rasos de lágrimas fixaram-se na mala daquela mãe, pousada em cima do balcão.
Sem pensar duas vezes, enfiei as minhas mãos na mala e retirei a carteira, abri-a, retirei as duas notas que tinha, embrulhei-as na mão e sai rapidamente dali.
Sentada num banco e disfarçadamente abri a mão e desfolhei as notas, vinte e cinco euros, respirei de alívio, tinha dinheiro para comprar o bilhete e regressar ao lar.
Dirigi-me a uma bilheteira e pedi um bilhete para Lisboa, a senhora disse-me boa tarde e deu-me o bilhete. Pensei que se calhar já não estava assim com tão má cara, ou então foi porque a senhora não viu os meus pés descalços.
Finalmente tinha chegado o momento de regressar, entrei no comboio, sentei-me num canto e encostei-me para trás no banco.
Finalmente podia descansar, eram cinco e meia da tarde, ainda iria chegar a tempo de jantar com os meus meninos. Guardei o bilhete no bolso das calças junto com o pacote de açúcar e fechei os olhos.
Acordei com a voz a anunciar que tínhamos chegado ao destino, abri os olhos meia assustada. Onde estava?
As pessoas iam saindo lentamente do comboio, olhei o mostrador ao fundo da carruagem, indicava “ Restauradores, 11-11-2015, 08:20”.
Como era possível? Esfreguei os olhos e olhei de novo. Estava a ver bem, eram oito e vinte da manhã e tinha chegado aos restauradores, afinal o que me tinha acontecido?
Saí do comboio, olhei-me e percebi que estava tudo bem comigo, ainda não queria acreditar, como um sonho pode ser tão real, mas sorri de contente, tinha sido apenas um dia virado ao contrário.
Levei a mão ao bolso para tirar o passe e segui o meu caminho, apressada.

No chão ficaram caídos um pacote de açúcar e vinte cêntimos. 

Carla Santos Ramada
Concurso " Um Dia Loucos" da Papel D'Arroz

sexta-feira, 8 de julho de 2016

O Poder do Amor


Desde que a solidão tomou conta desta casa, da minha vida e de mim que (sobre) vivo com esta frase a fazer eco na minha cabeça “ Prometo-te que, quando morrer, te visitarei…”.
Não consigo encontrar explicação para a tua partida tão prematura, mas agora entendo toda a tua preocupação comigo (que ás vezes até me tirava do sério).
 Tu sabias que ias partir e só eu não entendi (ou não quis entender).

- Oh Maria, que me dizes de estas férias grandes, fazermos uma daquelas viagens de sonho? - Diz lá o país que mais gostavas de ir, que aqui o teu Romeu leva-te lá.
- Não digas disparates homem!! Onde é que vamos arranjar o dinheiro? Não me dizes??
- Isso arranja-se, eu peço ao patrão para fazer mais umas horitas lá na fábrica.

Bem e nessas férias lá fomos nós, saídos directamente de uma aldeia do interior esquecido de Portugal para o centro do mundo, Veneza.
Gastámos mais do que as tuas horitas na fábrica e eu voltei preocupada com as nossas economias, mas tu parecias sempre optimista – Deixa lá, vamos conseguir amealhar mais um dinheirinho, o que importa é que te levei a conhecer mundo e prometo-te que, quando morrer, te visitarei….
Por aqui na aldeia acham que devia fazer o luto e como uma boa cristã devia vestir-me de preto integral, mas tu eras sempre tão alegre meu amor que não consigo….
Prefiro enfrentar as críticas ferozes da minha família e das beatas (que parece que não tem mais que fazer do que controlar por onde eu ando). Irónico, nem tu o fazias.
Por aqui nada acontece e a solidão ganha outra forma, torna-se mais volumosa.
Tentaste tantas vezes que eu tirasse a carta, para como tu dizias “eu ir a assapar por aí com as minhas amigas” agora vou ter de vender o velhinho Opel corsa que já está a ganhar erva à volta dos pneus.
Só passaram uns escassos três meses desde que vivo nesta prisão, qual solitária, para onde nos enviam quando nos portamos mal.

Batem no portão com força e acordo da letargia em que me encontrava, sentada nas escadas do pátio.
- Quem é?
- É o carteiro senhora, tenho cartas para si.
- Um momento.
Não sei porquê, levantei-me e dirigi-me ao portão para ir buscar a correspondência. Nunca mais o tinha feito desde que partiste.
Invariavelmente, o carteiro passava todos os dias à mesma hora e quando trazia mais alguma carta (sim devia ser mais alguma carta de condolências) eu pedia para deixar na caixa.
Mas hoje, inconscientemente, decidi ir buscar as cartas.
Quando abri o portão e dei de caras com o senhor carteiro….
Perdi-me (ou melhor, encontrei-me).

Agora entendo claramente o significado daquela frase “Prometo-te que, quando morrer, te visitarei…”.

Obrigado meu amor.

Janeiro 2016
Carla Santos Ramada

quinta-feira, 7 de julho de 2016

As meninas da aldeia

As meninas da aldeia


Quando no interior centro de Portugal uma mulher fica grávida, não há dúvidas, o bebé vai nascer a Coimbra.
Foi o que me aconteceu (nos aconteceu), mas passo então a contar a periclitante história da minha infância e como não podia deixar de ser começa assim….

Era uma vez uma jovem mulher grávida que vivia numa aldeia no interior escondido de Portugal, corria o glorioso (sem querer fazer qualquer analogia) ano de setenta e seis.
Naquela aldeia serrana, pertencente ao distrito de Leiria mas localizada mais perto de Coimbra o tempo corria devagar e aquele jovem casal trabalhava como a maior parte das pessoas, numa das muitas fábricas de lanifícios existentes no concelho.
Mas, depois do trabalho que colocava o dinheiro em casa, ainda havia muito que fazer, calçavam as galochas e lá iam eles para os campos semear as batatas, as couves e tudo o que era necessário para o sustento de uma casa.
Na aldeia (nem na vila), não havia hipermercados, supermercados ou mercearias como lhe queiram chamar, o peixeiro passava de quinze em quinze dias e o peixe que se conseguia comer era a sardinha porque era o mais barato.
O pão era amassado e cozido em forno de lenha e as carnes que se comiam eram dos animais que se criavam em casa - os porcos, as galinhas, as cabras e ovelhas.
A azáfama era sempre grande, na altura das vindimas ou da apanha da azeitona, toda a aldeia se ajudava e havia até máquinas que eram comunitárias como o esmagador de uvas ou a máquina da azeitona, andavam de casa em casa e tinham sido compradas pelas pessoas da aldeia.
Ora numa tarde soalheira de Fevereiro, andava a senhora a semear batatas quando se sentiu mal, uma dor forte na barriga que já começava a pesar e de repente fica toda molhada.
Assustada, chama pela mãe que também estava por ali, sabedoria vinda da experiência de quem já tinha parido quatro vezes (um dos quais tinha nascido morto) a mãe da mulher apressa-se a chamar o genro e diz que a criança vai nascer.
Não poderia ainda nascer, feitas as contas e sem ainda ter ido a um médico, a mulher entra em pânico:
- Não pode nascer ainda!!! Estou de seis meses.
- Vamos para Coimbra, atalha o marido, vou chamar um carro de praça (entenda-se um táxi).
Assim e passados quinze dias na maternidade em Coimbra nasceu não uma, mas duas bebés prematuras que os médicos disseram não sabiam se iriam resistir.
“Estão muito fracas e existem órgãos que ainda estão em formação, mas vamos fazer o nosso melhor”. Estas foram as palavras dos médicos, aquele jovem casal ficou de rastos.
Passada uma semana deram alta à mãe das crianças e informaram que elas iriam ficar na incubadora, não sabiam ainda por quanto tempo.
Foram semanas muito complicadas, todos os dias depois do trabalho na fábrica, o pai pegava na mãe e faziam quase duas horas pela estrada nacional de motorizada só para ir olhar as suas filhas pelo vidro da incubadora.
Só se percebia que estavam vivas porque pareciam um fole que ora se enche ora se esvazia, estavam com os olhitos tapados e tubos no nariz e na boca, a pele toda enrugada. Não tinham unhas nem sobrancelhas e muito menos cabelo.
Todos os dias vinham embora em lágrimas e de cada vez que tinham de se despedir era como se fosse a última vez que as viam, foram quarenta e um dias assim, neste calvário de emoções.
Mas a tormenta passou, os médicos estavam felizes, tinha sido um caso de sucesso, as bebés podiam finalmente ir para casa - estavam estáveis.
Os meses seguintes foram de romaria a casa daquele casal que tinha tido duas meninas gémeas “ e são tão pequeninas, tens de ir vê-las” era o que se comentava na aldeia.
Com o frio da serra, passaram meses seguidos, enfiadas no quarto, com os aquecedores pedidos emprestados.
A avó costumava dizer que eram um quilo de arroz, cabiam na palma de uma mão, tinham medo de lhes dar banho com medo que se partissem e o banho era dado numa bacia da cozinha.
E assim foram crescendo duas meninas alegres e bem-dispostas e sempre prontas a fazer traquinices.
As brincadeiras daquela altura eram na rua, tudo servia para brincar, as folhas das árvores, as pedrinhas do chão….
Aos cinco anos ganharam um primo, filho de uma irmã da mãe. Era como se fosse o irmão que não tinham e passou a ser o alvo preferido das brincadeiras das manas.
Nas férias grandes também ganhavam uma amiguinha, vinha da cidade grande (Lisboa, pois claro) passar as férias com os avós e passavam tardes inteiras encavalitadas nas oliveiras a cantar as canções novas que tinham aprendido.
Certa tarde resolveram ensinar o priminho a jogar às escondidas e de repente quando começaram a chamar por ele, este não aparecia.
A avó ficou em pânico pois era quem tomava conta dos netos junto com uma tia-avó e desatou aos berros que lhe tinham roubado o menino.
Foi a confusão naquela aldeia, onde nunca nada acontecia, as pessoas começaram a acorrer ao cabeço, assim se chamava o sítio onde moravam, por ficar num sítio alto em relação ao resto da aldeia.
Passadas umas horas, claro que encontraram o pequeno atrás de uma porta da cozinha, ao ser questionado porque não respondia, remeteu as responsabilidades para as primas “as primas disseram para eu não responder mesmo que ouvisse chamar”, claro que depois disto tudo sobrou para quem? – Para as primas.
Uma das brincadeiras preferidas das gémeas era irem para o palheiro do avô apanhar ouriços-cacheiros. – Sim é verdade, achavam um bichinho simpático e nem toda a gente conseguia apanhá-los, pois tem de se ter alguma mestria senão eles enrolam-se e depois nada feito.
Colocavam os bichos dentro de um saco plástico e penduravam no estendal da roupa e depois ficam ali sentadas, no chão a ver qual dos bichos rompia o saco e caía primeiro.
Aliás estas meninas tinham uma certa queda para os bichos e para andarem a brincar perdidas pelos campos a fora.
Outra altura em que tinham lá a amiga de Lisboa, decidiram ir até ao recreio da escola primária. – Sim existia uma escola primária na aldeia e naquela altura andavam lá umas vinte crianças, neste momento já só existe o edifício velho, gasto pelo tempo.
Por entre uns tijolos que estavam amontoados a um canto do recreio, eis que descobriram, um morcego bebé, minúsculo, todo pelado e escorregadio.
Resolveram logo ali que tinham de levá-lo para casa para tratar dele, qual aventureiras em busca do desconhecido, lá levaram o morcego e colocaram-no em cima do muro de casa da avó.
Estava a escurecer e enquanto discutiam o que um morcego comia, ouviram-se uns guinchos muito agudos e as três meninas só tiveram tempo de baixar as cabecinhas.
Quando voltaram a levantar-se e olharam para o muro o bichinho tinha desaparecido, ficaram muito tristes mas perceberam que a mãe dele o tinha vindo buscar e portanto estaria bem melhor.
Numa das vezes em que a mãe as deixou ir com o avô resineiro para o pinhal, voltaram com uma coderniz, resolveram que tinham de ficar com ela e lá convenceram a tia a arranjar-lhes uma gaiola para colocar a ave.
Andaram meses naquele entusiasmo, a cuidar do bicho, mas um belo dia - morreu.
Catástrofe das catástrofes, ficaram desoladas, choraram dias a fio e até fizeram um funeral á bichinha e tudo.
Numa outra ocasião, estavam na cozinha á espera que a avó terminasse de fazer o caldo trigo (umas papas feitas de água com farinha e açúcar), que elas adoravam. Elas tinham dito á avó que estavam doentes e com dores de barriga, quando uma vizinha vai chamar ao portão.
A senhora estava a pedir à avó para deixar ir as meninas numa novena (uma promessa feita a uma santinha em que tem de se levar em procissão dez meninas) e que depois lhes dava o lanche, a avó disse que tinha pena mas que estavam doentes.
Ao ouvirem isto, as pequenas saem disparadas de traz da porta, descem as escadas a correr e a dizer que já não estavam doentes - eram espertas as miúdas.
Assim lá foram passear e comeram as papas na mesma quando regressaram.
Adoravam passar as tardes com os avós pois estes contavam-lhes histórias de quando eram novos incluindo as músicas que o avô cantava para a avó quando já noite dentro passava à sua porta, antes de ir para casa – Antigamente não havia carros e motas eram poucas, de maneira que o avô calcorreava um par de quilómetros para ir aos bailes na terra da avó:

Ando por aqui de noite
Não faço mal a ninguém
Quem estiver na sua cama
Deixe-se estar que está bem.

            Tenho sono de galinha
            A galinha dorme em pé
Este meu sono menina
Causado por você é.

Eu prendi o sol á lua
As estrelas ao luar
Cozi o meu coração ao teu
Com linhas de alinhavar.

Nas telhas do teu telhado
Tenho um cigarro escondido
Cala-te e não digas nada
Que eu ando de amores contigo.

Esta noite chove, chove
Uma chuva miudinha
Se chover na tua cama
Anda amor vem ter á minha.
E quando um dia o tio mais novo resolveu ensiná-las a jogar à bola em frente de casa da avó e de repente – Ups!!! Partiu-se um vidro!!! E toca a fugir antes que a avó apareça…
Também foi por causa desse tio, que vinha da cidade grande, que elas na altura já na escola primária deixaram de acreditar no Pai Natal.
Nessa noite encantada, tinham de deixar uma meia pendurada na chaminé para o Pai Natal deixar as prendas e na manhã seguinte era uma correria para ir espreitar o que estava nas meias, (por norma, uns rebuçados, o famoso chapéu de chocolate, uma peça de roupa e um brinquedo).
Houve um ano em que estavam em casa dos avós, já depois do jantar e as manas resolveram dar uma fugida até sua casa, que ficava mesmo ao lado e não disseram nada a ninguém. Claro que ao chegarem à cozinha apanharam o tio em flagrante a colocar as coisas nas meias - foi choro até conseguirem adormecer.
Mas nem tudo era brincadeira e desilusões e cedo aprenderam que a vida não era fácil.
Havia sempre muito para fazer na aldeia e cedo começaram a ajudar os pais nas lides domésticas e no campo.
A parte que custava mais era ter de levantar muito cedo e com muito frio para ir com os pais para a fazenda nos dias de sementeira.
Tinham de ajudar no que a idade lhes permitia, normalmente faziam de meninas de recados:
- Vai à mina buscar este cântaro de água à mãe.
- Vai dar estas sacas ao tio que está no campo de baixo.
- Traz cá o cesto da comida para dar às pessoas.
Era isto o dia inteiro, mas a tudo as meninas assentiam com um leve suspirar.
A parte que ambas mais gostavam era de ir buscar água á mina pois podiam ficar ali um bocadinho a observar as rãs na beira da água.
Outro dia cansativo era o da apanha do milho, não gostavam mesmo nada, normalmente estava calor e tinham de vestir mangas compridas e collants, porque andar por entre o milho, sem ser resguardadas ficavam com os braços e as pernas cheias de comichão, de maneira que era preferível aguentar o calor.
Mas a parte mais divertida vinha no fim do dia, apesar de todos cansados, reuniam-se à volta do monte de espigas e começava assim a descamisada, ou seja, tirar a camisa às maçarocas do milho. Todos ficavam contentes e os tios, avós e primos todos cantavam canções alegres e divertidas e apesar de nem sempre as gémeas entenderem o que se cantava achavam piada e divertiam-se bastante.

            Ó lugar da Derreada
            Não és vila nem cidade
            És um lugar pequenino
Onde brilha a mocidade.

Ó lugar da Derreada
Para baixo correm as bicas
Sempre foste e hás-de ser
Lugar de moças bonitas

Ao passar o vale jestoso
Ao ramal da Ervideira
Com a sua janela aberta
Vê-se o alto da Louriceira.

É verdade que era uma vida dura e sem grandes mordomias, mas as meninas gostavam muito dos serões passados à volta da lareira, com o pai a contar histórias de quando era rapaz novo e namoradeiro e das canções que se tocavam nos bailaricos ao som da concertina:

            O ladrão do meio
            É bem azadinho
            Para namorar
Tem belo jeitinho

Rouba ladrão, rouba
Se sabes roubar
Rouba uma menina
Que te saiba amar

Já cá vai roubada
Já cá vai na mão
Já cá vai ao lado
Do meu coração

O ladrão do meio
É alto demais
Por isso lhe chamam
O espanta pardais.

Aos Domingos lá iam os quatro encavalitados na motorizada, fazer uma dúzia de quilómetros para almoçarem com os avós paternos, era uma viagem atribulada pela serra mas de que elas gostavam.
Só havia um televisor grande que estava na sala de estar e este só se ligava ao fim de semana, durante a semana era dia de escola e não havia televisão para ninguém e ordens eram ordens - cumpriam-se religiosamente.
E por falar em escolinha, ainda hoje no recreio da velhinha escola primária, lá estão de guarda as enormes árvores que as meninas plantaram num qualquer dia da árvore.
Nas tardes de inverno e quando já mais crescidinhas, lá iam elas para os quintais e pinhais há procura da iguaria da época, cogumelos e míscaros, estes últimos eram bem mais difíceis de encontrar pois tinham de andar há procura debaixo das carumas dos pinheiros.- Hum !!! Mas eram tão bons, quando a mãe fazia arroz de míscaros ou cogumelos assados na brasa.
Depois havia a altura da vindima (essa parte elas gostavam mais), pois entre um cacho e outro lá iam comendo umas uvas.
Mas o que mais gostavam era mesmo de andar atrás dos homens a ver todo aquele processo de levar o esmagador para a adega e de ficarem sossegadinhas (para não atrapalharem) a verem esmagar as uvas, gostavam daquele cheiro inebriante.
São tantas recordações boas…. Tudo faz parte de um passado e de uma história que nunca será apagada.

Uma dessas meninas sou eu, que hoje virou mulher de quarenta, mora na cidade grande – Lisboa, vai visitar a família incluindo a mana gémea à aldeia, no interior centro de Portugal e faz questão de contar aos filhos a sua infância e levá-los a experenciar muitas coisas que também ela fez em pequena. E como não podia deixar de ser tornar as suas histórias de infância eternas ao deixá-las escritas.

Carla Santos Ramada
Junho 2016
In colectânea "Décadas" da Papel D'Arroz

terça-feira, 3 de maio de 2016

Menina Mulher


Menina perdida,
Menina que brinca no chão de terra batida.
Menina alegre e traquina,
Menina que virou mulher,
Mulher num corpo de menina.
E a vida assim quis,
Que continuasse perdida,
Perdida em busca de sonhos,
Sonhos que se desfazem na espuma do mar.
E luta,
Luta,
Contra a maré - só quer amar.
Há-de chegar a sua hora
Há-de apanhar boleia nas asas de um condor
E conseguir alcançar os sonhos que habitam as nuvens
E ganhar força e coragem para viver de amor.
 E transforma-se em leoa
Que protege quem ama
Que ri mesmo que quando por dentro a sua alma chora
Mas quando o vento sopra forte e a tempestade avança
Prefere a solidão e chora,
Chora,
Chora até que o vento acalme e a tempestade passe,
Qual árvore de raízes profundas
Não tomba, e seus galhos são o refúgio de muita gente
Os que tais que ama, mas que por vezes se engana…
 Mas espera,
Espera a tempestade ir embora.
E as suas lágrimas fortalecem as raízes
Que a ligam à terra.
Sim é uma menina mulher,
Que ri
Que brinca
Que grita
Que desespera
Que cai
Que se levanta
Que volta a cair….
E volta a levantar-se
Que continua de pés descalços na terra batida
A criar raízes ….
Para continuar ligada à vida.

Carla Santos Ramada
Abril 2016
In "Perdidamente - Antologia de Poetas Lusófonos Contemporâneos"

domingo, 1 de maio de 2016

Ser Mãe


Mãe,
A palavra que muda tudo em ti, deixas de ter nome, passas a ser "a Mãe de …."
A vida ganha outra forma, outra cor e ganhas medos que antes não tinhas.
Medo de não seres capaz, medo de te acontecer alguma coisa e deixares aqueles seres indefesos, sem o teu colo, medo que lhes aconteça alguma coisa…..
Mas também passas a ter nervos de aço, 
A ultrapassar o teus medos,
A ir buscar forças onde achavas que já não tinhas,
Porque existe alguém que depende de ti, que não escolhe quando fica doente.
Aprendes a controlar os teus sentimentos,
A rir quando tens vontade de chorar, 
A brincar quando só te apetece estar deitada….
Passas a dar importância ao estado do tempo, antes não te importavas se ia chover ou estar vento, agora quando acordas é das primeiras coisas que fazes ainda deitada e de telemóvel na mão, pois se algum se constipa é uma chatice.
A vida ganha outra dimensão, sabes que desde o momento que és Mãe, é para sempre.
Sabes que um dia vão voar, tu própria os vais ensinar, voos pequenos em que sabes que voltam sempre ao ninho, mas um dia voarão de vez.
Tu ficarás lá, com o ninho preparado para quando algum dos teus rebentos quiser voltar...
 E ficarás sempre ali, onde eles sabem que te podem encontrar….

Porque uma vez Mãe, 
Mãe para sempre.

1 de Maio 2016
Carla Santos Ramada

terça-feira, 12 de abril de 2016

A Beatriz e os Amigos

Os ovos escondidos

Era Domingo de manhã e a Beatriz acordou inquieta, já tinha combinado que ia passar a manhã com os amigos no parque.
Acordou o irmão e os dois correram para o quarto dos pais.
- Pai, Mãe!!! – gritaram em uníssono.
- Já acordámos.

E lá conseguiram tirar os pais da cama e lá foram ter com os amigos ao parque de Monsanto.
Eram nove e meia da manhã e a Beatriz estava ansiosa, não parava quieta, era a primeira vez que os pais a deixavam ficar o dia inteiro com os amigos, também já tinha dez anos.
Os avós do André tinham uma casa em pleno parque e como ela adorava andar pelo meio da natureza, já andava há muito tempo a pedir aos pais para a deixarem ir passar o dia a casa dos avós do amigo.
Assim os pais lá acordaram um dia e eis que esse dia tinha finalmente chegado.
Ouvidas as recomendações finais lá se despediram dos pais e ficaram enfim sós, quer dizer, eles e os avós do André.
Depois de deixarem as coisas em casa, os cinco amigos lá foram explorar a natureza em redor da casa.
A Beatriz Ramada, daqui para a frente Beatriz R, a Beatriz A, a Joana, o Guilherme e o André eram colegas de turma mas também grandes amigos e adoravam explorar coisas novas.
A manhã estava primaveril, ouviam-se os grilos e os pássaros a chilrearem nas árvores, cheirava a terra húmida ainda do orvalho que se percebia nas ervas molhadas do chão.
O André seguia á frente, pois conhecia bem aqueles caminhos e tinha prometido ao avô que não se afastava muito e ao meio dia estavam em casa, de qualquer modo levaram telemóvel para o caso de ser preciso.
- Olha!!! Exclamou a Joana, o que é aquilo que está ali? Apontou para uma árvore.
- Ó sua tonta!!! São só umas pinhas.
- Parecia um animal que estava pendurado na árvore.
Riram-se todos com a observação da Joana e continuaram o caminho.
- Esperem por mim, já estou cansada, ainda vamos andar muito? Perguntou a Beatriz R. Era a que menos gostava de andar mas talvez a mais curiosa do grupo.
- Não sejas chata, resmungou o Guilherme.
-Olha, olha ali!!! De novo a Joana a apontar para uma árvore.
- O que foi agora, estás a ver mais pinhas é? Questionou a Beatriz A.
Mas a menina continuava.
- A sério!! Não façam barulho, está ali alguma coisa.
O André olhou mais atento para onde a amiga apontava.
- Sim é verdade, está ali um animal pequenino, não o assustem.
- Chiuuu!!! Ordenou a Beatriz R. já mais interessada.
- É um esquilo.
- A sério?
- Sim, afirmou muito seguro o André.
Ficaram os cinco parados e em silêncio a observar o bichinho, mas este logo deu conta da companhia e desapareceu.
- Que giro, vi um esquilo. As meninas ficaram muito entusiasmadas e foram um grande bocado a falar do assunto.
- Já vos disse que estão a ficar chatas, não se calam com a história do esquilo.
- Ó Guilherme pá não sejas assim, resmungou a Beatriz R.
- Também acho, devolveu a Beatriz A.
Uns metros mais á frente, as meninas, mais uma vez a fugir às regras e a saírem da estrada de terra batida para se irem enfiar pelo meio dos fetos e das urzes que começavam a deixar abrir umas flores amarelas.
- Venham para aqui. Berrou o André, qual Capitão sempre preocupado em manter a tripulação junta.
Mas elas teimosas, nem lhe deram ouvidos.
- Vocês vão perder-se, disse o Guilherme.
Já mais ao longe, ouviu-se:
- Esperem aí por nós.
Sem grande vontade, lá ficaram eles plantados no meio do caminho, esperando as donzelas.
- Venham cá!!! Estão a ouvir?
-Olha são elas, estão a chamar-nos, espero que não se tenham magoado.
- Achas?? Retorquiu o Guilherme, despreocupado.
Lá se enfiaram pelo meio do mato em busca dos sons que elas iam fazendo.
- Bolas que vocês vieram para longe, reclamou o André.
- Mas o que estão a fazer as três aí agachadas?
- Devem estar a fazer chichi, riu-se o Guilherme.
- Não sejam parvos, disse a Beatriz R, venham cá ver.
Ao aproximarem-se viram um ninho com três ovos pequeninos castanhos com pintas pretas.
- Isso é um ninho, mas onde anda a mãe?
- São ovos de quê? São tão pequenos? Inquiriu a Joana
- De galinha não são, esses são maiores, atalhou a Beatriz R.
- Escutem, estou a ouvir um barulho, disse André.
Voltaram-se á procura de onde vinha o barulho e encontraram uma ave pequena, encolhida nomeio dos fetos.
- Ó coitadinha, parece que está doente.
- Pois e deve ser a dona dos ovinhos.
- Não sei que ave é, disse o André, mas tenho uma ideia.
E assim resolveram trazer o ninho com os ovos e a pobre ave para casa do avô, de certeza que este saberia que ave era e ia ajudá-la.
O caminho de volta para casa foi muito devagarinho com medo de deixarem cair o ninho ou de magoarem mais a ave.
Ao chegarem a casa, todos correram para mostrar ao avô o que tinham encontrado.
Depois de colocarem o ninho e a mãe numa gaiola, todos se sentaram em silêncio para ouvir as explicações do avô.
Aquela ave é uma coderniz, é da família das galinhas mas mais pequena e não é uma ave doméstica, por isso é difícil tê-la a viver muito tempo presa numa gaiola.
- Então quer dizer que temos de a soltar?
- Oh! Não podemos ver nascer os seus filhotes? Perguntou a Beatriz R.
- Tenho muita pena, mas assim que ela estiver melhor temos de a voltar a colocar no seu ambiente, não vivem bem assim, vai acabar por morrer, percebem?
Os meninos ficaram tristes, mas entenderam e pelo menos ainda podiam cuidar dela durante o dia.
Passaram a tarde a olhar para a gaiola, estavam curiosos e preocupados com aquela pequena ave. Deram-lhe água, comida e até lhe puseram um nome.
- Então se todos estão de acordo, vai chamar-se Nica.
E assim se passou a tarde.
Quando regressou a casa a Beatriz R. vinha cansada mas cheia de novas histórias que podia escrever, pintar e contar aos pais e ao mano mais novo.
- Pais, obrigado por me deixarem passar o dia com os meus amigos, adorei.
A Beatriz estava ansiosa por contar todas as aventuras que tinha vivido ao irmão mais novo, mas estava tão cansada que adormeceu no carro a caminho de casa.
Iria com certeza sonhar com todas aquelas aventuras.




Carla Santos Ramada

10 Abril de 2016