Depois de um dia da trabalho, uma aula de Zumba para gastar energias, ou melhor absorver todas aquelas energias positivas.
Chego a casa parecendo que vim à chuva, mas não.... estou mesmo toda pegajosa e sabe tãoooo ver aqueles braços abertos, prontos para se lançarem no meu pescoço e quase me derrubarem ao chão.
E eu deixo-me abraçar e beijar pelos meus filhotes, que me arrastam para o quarto para me contarem como foi a escola e como se portaram bem..... e nem me importa o facto de ainda ter a roupa colada ao corpo....
É por isto que eu acho que, para além de ser mãe (que amo de paixão) sou mulher e preciso de ter um tempo para mim, para me revitalizar, para fazer aquilo que gosto. Ao fazer isso, liberto-me e torno-me uma mãe mais disponível, com mais paciência, uma mãe melhor,
Um dia vou dançar, outro vou ao cinema com o marido, no dia a seguir vou passear com os filhotes.... preciso de ter este equilíbrio na minha vida.
Só assim consigo ser melhor mãe, melhor esposa e melhor profissional no trabalho, porque me sinto equilibrada, caso contrario atrofiava.
Não quero ser uma mulher mal disposta, uma mãe sempre chata ( ás vezes é preciso!!!) e uma esposa rabujenta.
Se calhar sou uma mãe descomplicada, que já viveu momentos complicados, mas espero conseguir preservar isso em mim - Mãe descomplicada, filhos felizes....
Carla Santos Ramada
11 Outubro 2016
terça-feira, 11 de outubro de 2016
domingo, 11 de setembro de 2016
Nhaíla - A menina coragem
Correu desenfreada, descalça pelo chão de terra, com
os cabelos soltos ao vento agreste do fim do dia.
Quando já não tinha mais forças, deixou-se cair
naquela terra avermelhada, como o sangue que agora lhe corria com tamanha
intensidade nas veias, parecia que ia rebentar.
Tinha ouvido perfeitamente bem, a proposta que
ouvira, incluía vendê-la ao homem das barbas e este assegurava que o resto da
família chegava em segurança à Europa.
O que deveria fazer, aceitar o seu destino,
entregar-se aquele homem muito mais velho e garantir que a sua família
conseguiria começar uma vida nova na Europa? Ou desaparecer e procurar ela uma
nova vida longe de todos?
Ficou ali, deitada no chão, tipo boneca abandonada.
Deve ter adormecido, pois acordou com os primeiros
raios de sol a bafejarem o seu rosto de tês morena e custou-lhe despertar para
a realidade em que se encontrava.
Era ainda muito cedo, o sol estava a despontar
no horizonte ainda em tom alaranjado. Nhaíla levantou-se decidida, ajeitou a
túnica verde e bordada a dourado, sacudiu-lhe o pó e amarrou o cabelo com o
elástico que trazia no pulso, tinha tomado uma decisão, já tinha quinze anos e
não ia ser moeda de troca.
De regresso à sua tenda, encontrou todos em sono
profundo, deviam ter adormecido tarde, pois deviam ter andado à sua procura -
pensou e sorrateiramente, retirou umas moedas da bolsa que o pai trazia sempre
presa à cintura, colocou algumas peças de roupa numa sacola de pano e retirou
um lenço preto da mãe. Depois colocou o lenço em volta da cabeça, a sacola a tiracolo
juntamente com um cantil de água, uns bolos secos e um pão - agarrou na viola,
deitou um último olhar triste aos irmãos e aos pais e saiu da tenda.
Enquanto caminhava com uns chinelos a calcar a terra
batida, limpou uma lágrima teimosa do rosto e seguiu caminho, tinha de alcançar
Portugal e encontrar Pedro.
Carla Santos Ramada
Julho de 2016
domingo, 14 de agosto de 2016
O Flagelo dos incêndios
Já sabia pelos media e por me encontrar na região centro (também assolada pelo mesmo flagelo), que Portugal se encontrava a arder, mas só quando começei a percorrer a estrada do centro para o norte do país é que percebi efectivamente o inferno das chamas em que o nosso pequenino Portugal estava mergulhado.
Fazer aquela viagem foi devastador.
Circular na A1 de Coimbra até ao Porto foi uma hora assustadora, não estava à espera de viver tal cenário, teve de se circular com as luzes ligadas, a paisagem na zona de Aveiro, outrora aprazível e verdejante, com os ninhos das cegonhas instalados nos postes desaparecera, em vez disso, fumo, muito fumo, colunas de carros de bombeiros a circular..
O cheiro a queimado era mais que muito, mesmo com os vidros todos fechados, tornava-se quase insuportável.
Não entendo, como podemos estar a passar por tudo isto, ou se calhar até entendo!!!
È triste, muito triste.
As férias podiam ser diferentes? Podiam, mas é impossível ficar indiferente a tanta devastação e tanto sofrimento.
Carla Santos Ramada
"Desabafos"
14 Agosto 2016
Fazer aquela viagem foi devastador.
Circular na A1 de Coimbra até ao Porto foi uma hora assustadora, não estava à espera de viver tal cenário, teve de se circular com as luzes ligadas, a paisagem na zona de Aveiro, outrora aprazível e verdejante, com os ninhos das cegonhas instalados nos postes desaparecera, em vez disso, fumo, muito fumo, colunas de carros de bombeiros a circular..
O cheiro a queimado era mais que muito, mesmo com os vidros todos fechados, tornava-se quase insuportável.
Não entendo, como podemos estar a passar por tudo isto, ou se calhar até entendo!!!
È triste, muito triste.
As férias podiam ser diferentes? Podiam, mas é impossível ficar indiferente a tanta devastação e tanto sofrimento.
Carla Santos Ramada
"Desabafos"
14 Agosto 2016
terça-feira, 12 de julho de 2016
O dia ao contrário
O dia começou como sempre às 6.30 da
manhã, o despertador do telemóvel não falha, desgraçado.
Como de costume, entro em piloto
automático, coisa que agora tenho a certeza é uma capacidade exclusiva das
mulheres.
Tinha um monte de coisas para fazer, para
variar. Despachar as crianças para a escola, apanhar os transportes para o
trabalho (sim, vários transportes), sair antes de almoço para ir a uma consulta
ao hospital, voltar para o trabalho, mas antes almoçar qualquer coisa pelo caminho,
sair mais cedo para ir á reunião da escola do pequeno, depois sair directo para
a natação da miúda e pelo caminho passar pelo pão. Regressar a casa depois das
oito da noite, para dar banhos, ajudar nos trabalhos da escola, tratar do
jantar e reencaminhá-los para a cama… há!! É verdade, a roupa, ainda existe um
cesto de roupa á espera para se lavar e outro para arrumar…
Canseira só de pensar nisto tudo enquanto
estou no banho. Sim, sim, enquanto se toma banho, faz-se uma revisão mental á
agenda do dia.
Saio de casa já a correr para apanhar o
comboio e ao chegar á estação dou de caras com um cenário surreal, pessoas a
correr desnorteadas por todo o lado, crianças a chorar e a gritar pelas mães. Fiquei
imobilizada, ainda a tentar assimilar tudo aquilo.
Fui andando devagar e tentei chegar a uma
das bilheteiras, na esperança de perceber o que se passava, havia fumo no ar e
cheiro a pólvora seca, estremeci ao ver bem á minha frente um homem armado,
empunhava uma arma que percebi logo era bem real, percebi que me olhou mas
tentei desviar o olhar e sair dali.
O meu coração parecia que me saltava da
boca, só repetia a mim mesma, “ tens de sair daqui”.
Virei costas e desatei também eu a correr,
desnorteada como todas as outras pessoas, o instinto de defesa é um denominador
comum a todos nós.
Não sei quem eram aquelas pessoas armadas,
nem o seu propósito mas escolheram muito mal o dia, eu tinha tanta coisa para
fazer, estava toda arranjadinha e o pior, estava de saltos altos (dá sempre um
ar mais apresentável quando se tem reuniões e quer se queira quer não a nossa
sociedade ainda vive de aparências).
No meio da correria esbarrei com um senhor
e estatelei-me no chão, azar dos azares, fiquei aos pés de um dos fulanos que
estava armado. Gelei.
Pela
primeira vez na vida fiquei sem reacção alguma, só pensava: O que me queriam!
mas o melhor seria cooperar.
Fui agarrada por uma mão enorme, que sem
grande esforço me colocou em pé, sem conseguir pensar, fui arrastada por esse indivíduo
das mãos grandes, parecia-me estrangeiro, russo talvez.
Numa questão de minutos que a mim me
pareceram eternidades, levaram-me para fora da estação por uma porta das
traseiras e nessa altura já eu tinha perdido os sapatos pelo caminho e trazia a
minha mala a arrastar o chão.
Deparei-me com outras mulheres todas com o
mesmo ar de terror espelhado no olhar, eu deveria estar igual, pensei.
Comecei a aperceber-me que deveríamos ter
sido escolhidas, o padrão era o mesmo, só mulheres caucasianas, entre os 20 e
os 35 anos talvez, jovens e saudáveis e isso gerou em mim um pânico difícil de
explicar. Todo o meu corpo tremia, não sabia o que pensavam as outras mas eu
acabara de ganhar consciência do que aquilo significava, estávamos a ser
raptadas, só podia ser para tráfico.
Enquanto eu me perdia nestes pensamentos,
já estava enfiada numa carrinha, vendaram-me os olhos, retiraram-me a mala e
senti o barulho do motor, nesse instante, sentada no chão, no escuro, chorei
compulsivamente, pensava não no meu destino, mas no dos meus filhos, o que
seria deles sem mim.
Imaginava aqueles pequenos a
perguntar pela mãe, vezes sem conta e á medida que o tempo ia passando naquela
carrinha, também ia serenando o meu coração.
Só tinha de tentar ser racional, não sabia
para onde ia, mas tinha de haver uma maneira de conseguir fugir, era isso, a
solução seria, fugir.
Já tinha um objectivo agora só tinha de o
colocar em prática mal a carrinha parasse e nos abrissem aquelas malfadadas
portas.
Tinha perdido a noção do tempo, de quando
em vez ainda ouvia o soluçar das outras mulheres mas nenhuma de nós se atrevia
a falar.
Sentia fome, e começava a doer-me a
cabeça, - Eu e a minha mania de sair de casa sem tomar o pequeno- almoço, dá
nisto.
Não tive tempo de pensar em comida, a
carrinha imobilizou-se e comecei a ouvir vozes, falavam russo, não tinha
dúvidas.
Senti um calafrio no peito, tinha de
arranjar maneira de fugir. A porta da carrinha abriu-se e já vários homens nos
puxavam para fora aos tropeções.
Senti o sol de Outono a aquecer-me a face
e percebi que a viagem devia ter demorado umas horas, o sol já ia alto.
Sem grandes demoras, respirei fundo e
virei-me para um dos homens, soletrei bem devagar:
- Water, I need water, please??
Achei que não iriam entender português,
mas também não tive nenhuma resposta da parte dele, lembro-me de pensar – Este
deve ser daqueles, tipo calhau com olhos.
Mas não podia desistir, continuava vendada
e estavam a levar-me para algum sítio, tropecei em algumas pedras por isso
devia estar a ir para algum sítio mais isolado.
Insisti com o calhau com olhos, o tal das
mãos grandes que me continuavam a agarrar:
- Pleeeeaaassseee!!! I need water and I need a bathroom.
Nada, deu-me um puxão ao braço com tal
força que gemi de dor e continuámos o caminho.
- Raios!!! São mesmo russos, estou feita.
As lágrimas voltaram a visitar a minha face, mas depois o meu coração fez –me
ver os meus filhos, respirei fundo outra vez, e outra vez e fiz nova investida.
Fiquei inerte, os pés sujos e doridos de
andar, presos ao chão, ele voltou a puxar-me o braço, mas aí eu já estava
preparada, rangi os dentes e disse, desta vez em português, mais alto e com a
voz mais firme que consegui fazer:
- Eu preciso de uma casa de banho, ou me
levam a uma ou vou fazer aqui!!! Posso??
Fiz o gesto de me baixar, como se me fosse
sentar na sanita, e desta vez fui eu que dei um puxão no calhau com olhos,
obrigando-o a baixar também.
Ficámos parados, e voltei a ouvi-los
falar, apesar de não perceber nada, o facto de termos parado já era um bom
sinal, pensei para os meus botões.
Voltámos a andar e senti que virámos á direita,
fizeram-me entrar num sítio, devia ser antigo pois ouvi uma porta a ranger, de
seguida subimos umas escadas e de repente, tiraram-me a venda e desataram-me as
mãos.
Os meus olhos piscaram, com a luz ténue que
recebiam, pobrezitos, estavam há muito tempo na penumbra.
O primeiro impacto foi brutal, estávamos
todos numa sala, com duas janelas com portadas de madeira velha, já sem vidros,
não existia mobiliário algum e o chão de madeira já carcomida pelo tempo, indiciavam
que estava num prédio abandonado.
-Oh meu Deus! Onde é que eu estou. Senti o
pânico de novo a tomar conta de mim, as outras estavam igualmente estarrecidas,
conseguia perceber isso pelo seu olhar.
-Não! Não! E Não! Vamos lá manter a calma
Margarida., pensa nos teus filhos, tens de voltar para eles.
Eram a minha constante motivação, às vezes
pensava se todas aquelas mulheres também teriam uma motivação assim tão
grandiosa para conseguirem fugir daquele destino.
Os meus olhos, ainda estremunhados, como
se tivessem acabado de acordar, passearam-se pela sala, vi uma porta aberta ao
fundo e tínhamos quatro carrascos de arma em punho e de caras destapadas a
olhar para nós.
Um deles apontou com a arma para a dita
porta, que estava escancarada. Fui das primeiras a avançar, aquilo era a luz
verde que eu precisava.
Eles começaram a empurrar as outras
mulheres para me seguirem, denotei que deviam estar com pressa, o que só podia
indicar que aquilo era um ponto de passagem.
Mal me aproximei da porta, o cheiro nauseabundo
quase que me fez vomitar, nem sei se chamaria aquilo de casa de banho.
Entrámos todas a monte, empurradas pelas
armas dos homens, algumas começaram a aliviar a bexiga sem se preocuparem em
encontrar a sanita, eu fiquei mais preocupada em verificar se aquele cubículo
mal cheiroso teria alguma janela que desse para a rua.
Havia de facto um janelo pequeno por onde
entrava o sol envergonhado e uma ligeira brisa, era aquela a brisa da
liberdade, pensei.
No meio da confusão de mulheres a tentarem
fazer as suas necessidades, achei que se eu tentasse pular o velho autoclismo e
saísse pelo janelo, eles não dariam logo por minha falta, tinha de tentar.
Passei por entre as outras e elas que me
perdoem, mas aqui era mesmo o salve-se quem puder, e alcancei o janelo.
Assim que coloquei a cabeça de fora,
percebi o burburinho que tinha gerado entre as outras mulheres e percebi que
não tinha muito tempo até eles perceberem que algo se passava.
Aquela janela pequenina, mas que para mim
significava voltar á vida, dava para a escada de incendio, talvez eles não
conhecessem o prédio e só fizeram aquela paragem para me sossegar, e ainda bem,
neste caso tinha de aproveitar os erros dos outros.
Estava num segundo andar, corri pelas
escadas de incêndio sem olhar para trás, estas abanavam e senti que podiam cair
a qualquer instante, mas como estava descalça também não fazia barulho, pelo
que era uma vantagem e alcancei o chão num ápice.
Corri, corri sem direcção, sem norte,
apenas uma coisa latejava na minha cabeça, ir para bem longe, sair dali.
Parei quando me deparei com uma avenida
grande e movimentada, já não tinha mais fôlego, sentia-me a desfalecer, sem forças,
mas ainda assim, alerta.
Olhei para todos os lados, qual animal a
fugir do seu caçador, não vislumbrei nem carrinha nem homens armados.
Nesse instante deixei-me cair no passeio,
encostei-me a uma parede e chorei como uma criança, tinha conseguido fugir
daquele inferno, podia voltar para casa, para a minha família e as minhas
crias.
Depois percebi que não sabia sequer onde
estava, não conhecia aquele sítio, as pessoas passavam apressadas e nem
reparavam em mim.
Triste realidade aquela em que me encontrava,
descalça, suja, sem mala, sem dinheiro, sem telemóvel, como iria sair dali.
Quase sem forças para me levantar, os pés
doridos, o estômago colado ás costas, olhei para mim, como era possível,
tinha-me transformado numa sem abrigo, era invisível a quem passava.
Respirei fundo, engoli em seco, a boca
áspera ansiava por umas gotas de água, mas primeiro tinha de perceber onde
estava, pensei, depois as necessidades alimentares e fisiológicas.
Começei a olhar as placas e li numa delas,
“Torre dos clérigos”, fiquei de boca aberta, estava no centro do Porto.
Pensei em levantar-me mas as minhas pernas
não acompanhavam os meus pensamentos, não tinha forças.
Passaram por mim uns miúdos a comer
hambúrgueres e até me veio água á boca, já deviam ser mais do que horas de
almoço.
Tinha de me fazer á vida, não podia ficar
ali sentada á espera que me encontrassem. Perdi a vergonha e perguntei a um
senhor que passava que horas eram, a resposta veio seca e sem sequer parar, “
são 13.30”.
O meu estômago tinha razão, eram mais que
horas de comer, como iria conseguir isso se não tinha dinheiro?
Estendi a mão, baixei a cabeça com
vergonha, e deixei-me ficar ali, não tardou muito caíram as primeiras moedas,
mas tive de esperar muito tempo para conseguir dois euros.
Levantei-me a custo ajudada pela parede
que me suportou aquele tempo todo e comecei a andar, a zona parecia antiga e
pensei que talvez fosse fácil encontrar uma fonte onde pudesse matar a sede,
mas nada, definitivamente, hoje não era o meu dia.
Resolvi interpelar uma rapariga que vinha
com o namorado e perguntei se sabia onde havia uma fonte para eu poder beber
água pois não tinha dinheiro para comprar (achei que não valia de nada eu
tentar contar a minha história, pois era tão bizarra que ninguém acreditaria).
Eles olharam-me de alto abaixo e
afastaram-se de mim, como se eu lhes fosse pegar alguma coisa e depois ela foi
com a mão ao bolso das calças e deu-me uma moeda e seguiram caminho
rapidamente.
Bem, achei melhor tentar comprar uma
garrafa de água e alguma coisa para comer, entrei no primeiro café de esquina
que encontrei e assim que cheguei ao balcão o empregado disse-me:
- A senhora não pode estar aqui, pedir é
na rua.
Acho que só nessa altura é que tomei
consciência da situação em que me encontrava.
Um mendigo, sem abrigo, que toda a gente
quer ver bem longe da sua porta.
Olhei o senhor nos olhos e disse:
- Desculpe, eu tenho dinheiro e ainda não
cheiro assim tão mal, acha que posso fazer o meu pedido?
O empregado limitou-se a perguntar o que
queria e pediu-me o dinheiro. Pedi um café, um bolo e uma garrafa de água das
pequenas.
Serviu-me as coisas ao balcão, deu-me
vinte cêntimos de troco e disse “Passe bem”.
Entendi que se não queria chatices o
melhor seria comer na rua mas ainda me atrevi a perguntar se podia ir á casa de
banho.
Ele lançou-me um olhar reprovador mas
perante o olhar dos outros clientes lá acedeu.
Ganhei outro alento, depois de fazer a
vontade á minha bexiga e satisfazer o meu estômago, ainda guardei o pacote de
açúcar no bolso das minhas calças (agora mais brancas que pretas), não sabia
quando ia voltar a conseguir comer e um pacote de açúcar podia dar muito jeito.
Posto isto, tinha de puxar pela cabeça e
tentar sair dali, tinha de regressar a Lisboa. Mas como ia conseguir dinheiro
para comprar bilhete? Só se conseguisse ligar a alguém, mas sem telefone fica
difícil.
Deambulei pelas ruas do Porto, pensei o
que se estaria a passar com aquelas raparigas que foram apanhadas como eu mas
que ficaram para trás. Vi uma esquadra de polícia e achei que podia tentar ir
explicar o que me aconteceu, era isso, eles iam ajudar-me a voltar.
O meu rosto iluminou-se como se tivesse
ganho a lotaria.
Entrei na esquadra da PSP e dei de caras
com um senhor barrigudo e de bigode a ler um jornal do outro lado de um guichê.
- Olhe? Desculpe, boa tarde, pode
ajudar-me?
- O senhor pousou o jornal, levantou os
olhos para mim e dirigiu-se ao guichê.
Esticou o pescoço para me mirar e
resmungou:
- O que queres daqui?
- Eu não sou daqui, sou de Lisboa e
preciso de voltar, esta manhã quando ia para apanhar o comboio fui raptada por
um grupo de homens e trouxeram-me para aqui mas eu consegui fugir, só que não
tenho dinheiro, nem telefone para voltar.
A pergunta seguinte saiu seca:
- Documentos?
- Ouça, não tenho nada, eles ficaram com a
minha mala! Insisti mas já sem esperança.
Riu-se ma minha cara, voltou a sentar-se e
disse-me para eu desandar dali.
Olhei o relógio velho pregado na parede,
marcava quatro da tarde.
Saí de cabeça baixa, os pés a
arrastarem-se pela rua, se nem a polícia acreditava em mim, como é que eu ia
conseguir chegar a casa.
Ah! Como eu precisava de um abraço do meu
marido e dos meus filhos.
A noite não tardava aí e como iria passar
a noite numa cidade que não conheço e na rua, impossível de imaginar, nem nos
meus piores pesadelos.
De repente vi a placa a indicar os
comboios,- É isso! Pensei, vou apanhar o comboio para Lisboa, tenho de
conseguir, dê por onde der.
Pus-me a caminho, fui seguindo as placas,
já sem me importar com o olhar desconfiado dos transeuntes.
Finalmente a estação, parecia uma miragem,
comecei a deambular pelas várias linhas e descobri que o próximo comboio com
rumo à capital partia dali a meia hora.
Significava que tinha meia hora para
conseguir o abençoado bilhete.
Ainda pensei tentar entrar sem bilhete,
mas corria o risco de ser apanhada e depois acabava por perder o comboio. Não
dava, teria de conseguir o dinheiro. Mas como?
Entrei na casa de banho da estação e
deparei-me com uma mãe atarefada com dois pequenos enfiados na casinha de
banho.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas - os
meus filhos! estava com tantas saudades deles, senti o meu coração apertadinho.
Mas o instinto de sobrevivência foi mais
forte, os meus olhos ainda que rasos de lágrimas fixaram-se na mala daquela
mãe, pousada em cima do balcão.
Sem pensar duas vezes, enfiei as minhas
mãos na mala e retirei a carteira, abri-a, retirei as duas notas que tinha,
embrulhei-as na mão e sai rapidamente dali.
Sentada num banco e disfarçadamente abri a
mão e desfolhei as notas, vinte e cinco euros, respirei de alívio, tinha
dinheiro para comprar o bilhete e regressar ao lar.
Dirigi-me a uma bilheteira e pedi um
bilhete para Lisboa, a senhora disse-me boa tarde e deu-me o bilhete. Pensei
que se calhar já não estava assim com tão má cara, ou então foi porque a
senhora não viu os meus pés descalços.
Finalmente tinha chegado o momento de
regressar, entrei no comboio, sentei-me num canto e encostei-me para trás no
banco.
Finalmente podia descansar, eram cinco e
meia da tarde, ainda iria chegar a tempo de jantar com os meus meninos. Guardei
o bilhete no bolso das calças junto com o pacote de açúcar e fechei os olhos.
Acordei com a voz a anunciar que tínhamos
chegado ao destino, abri os olhos meia assustada. Onde estava?
As pessoas iam saindo lentamente do
comboio, olhei o mostrador ao fundo da carruagem, indicava “ Restauradores,
11-11-2015, 08:20”.
Como era possível? Esfreguei os olhos e
olhei de novo. Estava a ver bem, eram oito e vinte da manhã e tinha chegado aos
restauradores, afinal o que me tinha acontecido?
Saí do comboio, olhei-me e percebi que
estava tudo bem comigo, ainda não queria acreditar, como um sonho pode ser tão
real, mas sorri de contente, tinha sido apenas um dia virado ao contrário.
Levei a mão ao bolso para tirar o passe e
segui o meu caminho, apressada.
No chão ficaram caídos um pacote de açúcar
e vinte cêntimos.
Carla Santos Ramada
Concurso " Um Dia Loucos" da Papel D'Arroz
Carla Santos Ramada
Concurso " Um Dia Loucos" da Papel D'Arroz
sexta-feira, 8 de julho de 2016
O Poder do Amor
Desde que a
solidão tomou conta desta casa, da minha vida e de mim que (sobre) vivo com
esta frase a fazer eco na minha cabeça “ Prometo-te que, quando morrer, te
visitarei…”.
Não consigo
encontrar explicação para a tua partida tão prematura, mas agora entendo toda a
tua preocupação comigo (que ás vezes até me tirava do sério).
Tu sabias que ias partir e só eu não entendi
(ou não quis entender).
- Oh Maria, que
me dizes de estas férias grandes, fazermos uma daquelas viagens de sonho? - Diz
lá o país que mais gostavas de ir, que aqui o teu Romeu leva-te lá.
- Não digas
disparates homem!! Onde é que vamos arranjar o dinheiro? Não me dizes??
- Isso
arranja-se, eu peço ao patrão para fazer mais umas horitas lá na fábrica.
Bem e nessas férias
lá fomos nós, saídos directamente de uma aldeia do interior esquecido de
Portugal para o centro do mundo, Veneza.
Gastámos mais do
que as tuas horitas na fábrica e eu voltei preocupada com as nossas economias,
mas tu parecias sempre optimista – Deixa lá, vamos conseguir amealhar mais um
dinheirinho, o que importa é que te levei a conhecer mundo e prometo-te que,
quando morrer, te visitarei….
Por aqui na
aldeia acham que devia fazer o luto e como uma boa cristã devia vestir-me de
preto integral, mas tu eras sempre tão alegre meu amor que não consigo….
Prefiro
enfrentar as críticas ferozes da minha família e das beatas (que parece que não
tem mais que fazer do que controlar por onde eu ando). Irónico, nem tu o
fazias.
Por aqui nada
acontece e a solidão ganha outra forma, torna-se mais volumosa.
Tentaste tantas
vezes que eu tirasse a carta, para como tu dizias “eu ir a assapar por aí com
as minhas amigas” agora vou ter de vender o velhinho Opel corsa que já está a
ganhar erva à volta dos pneus.
Só passaram uns
escassos três meses desde que vivo nesta prisão, qual solitária, para onde nos
enviam quando nos portamos mal.
Batem no portão
com força e acordo da letargia em que me encontrava, sentada nas escadas do
pátio.
- Quem é?
- É o carteiro
senhora, tenho cartas para si.
- Um momento.
Não sei porquê,
levantei-me e dirigi-me ao portão para ir buscar a correspondência. Nunca mais
o tinha feito desde que partiste.
Invariavelmente,
o carteiro passava todos os dias à mesma hora e quando trazia mais alguma carta
(sim devia ser mais alguma carta de condolências) eu pedia para deixar na
caixa.
Mas hoje,
inconscientemente, decidi ir buscar as cartas.
Quando abri o
portão e dei de caras com o senhor carteiro….
Perdi-me (ou
melhor, encontrei-me).
Agora entendo claramente
o significado daquela frase “Prometo-te que, quando morrer, te visitarei…”.
Obrigado meu
amor.
Janeiro 2016
Carla Santos Ramada
quinta-feira, 7 de julho de 2016
As meninas da aldeia
As meninas da aldeia
Quando no interior centro de Portugal uma
mulher fica grávida, não há dúvidas, o bebé vai nascer a Coimbra.
Foi o que me aconteceu (nos aconteceu),
mas passo então a contar a periclitante história da minha infância e como não
podia deixar de ser começa assim….
Era uma vez uma jovem mulher grávida que
vivia numa aldeia no interior escondido de Portugal, corria o glorioso (sem
querer fazer qualquer analogia) ano de setenta e seis.
Naquela aldeia serrana, pertencente ao
distrito de Leiria mas localizada mais perto de Coimbra o tempo corria devagar
e aquele jovem casal trabalhava como a maior parte das pessoas, numa das muitas
fábricas de lanifícios existentes no concelho.
Mas, depois do trabalho que colocava o
dinheiro em casa, ainda havia muito que fazer, calçavam as galochas e lá iam
eles para os campos semear as batatas, as couves e tudo o que era necessário
para o sustento de uma casa.
Na aldeia (nem na vila), não havia
hipermercados, supermercados ou mercearias como lhe queiram chamar, o peixeiro
passava de quinze em quinze dias e o peixe que se conseguia comer era a
sardinha porque era o mais barato.
O pão era amassado e cozido em forno de
lenha e as carnes que se comiam eram dos animais que se criavam em casa - os
porcos, as galinhas, as cabras e ovelhas.
A azáfama era sempre grande, na altura das
vindimas ou da apanha da azeitona, toda a aldeia se ajudava e havia até
máquinas que eram comunitárias como o esmagador de uvas ou a máquina da
azeitona, andavam de casa em casa e tinham sido compradas pelas pessoas da
aldeia.
Ora numa tarde soalheira de Fevereiro,
andava a senhora a semear batatas quando se sentiu mal, uma dor forte na
barriga que já começava a pesar e de repente fica toda molhada.
Assustada, chama pela mãe que também estava
por ali, sabedoria vinda da experiência de quem já tinha parido quatro vezes
(um dos quais tinha nascido morto) a mãe da mulher apressa-se a chamar o genro
e diz que a criança vai nascer.
Não poderia ainda nascer, feitas as contas
e sem ainda ter ido a um médico, a mulher entra em pânico:
- Não pode nascer ainda!!! Estou de seis
meses.
- Vamos para Coimbra, atalha o marido, vou
chamar um carro de praça (entenda-se um táxi).
Assim e passados quinze dias na maternidade
em Coimbra nasceu não uma, mas duas bebés prematuras que os médicos disseram
não sabiam se iriam resistir.
“Estão muito fracas e existem órgãos que
ainda estão em formação, mas vamos fazer o nosso melhor”. Estas foram as
palavras dos médicos, aquele jovem casal ficou de rastos.
Passada uma semana deram alta à mãe das
crianças e informaram que elas iriam ficar na incubadora, não sabiam ainda por
quanto tempo.
Foram semanas muito complicadas, todos os
dias depois do trabalho na fábrica, o pai pegava na mãe e faziam quase duas
horas pela estrada nacional de motorizada só para ir olhar as suas filhas pelo
vidro da incubadora.
Só se percebia que estavam vivas porque
pareciam um fole que ora se enche ora se esvazia, estavam com os olhitos
tapados e tubos no nariz e na boca, a pele toda enrugada. Não tinham unhas nem
sobrancelhas e muito menos cabelo.
Todos os dias vinham embora em lágrimas e
de cada vez que tinham de se despedir era como se fosse a última vez que as
viam, foram quarenta e um dias assim, neste calvário de emoções.
Mas a tormenta passou, os médicos estavam
felizes, tinha sido um caso de sucesso, as bebés podiam finalmente ir para casa
- estavam estáveis.
Os meses seguintes foram de romaria a casa
daquele casal que tinha tido duas meninas gémeas “ e são tão pequeninas, tens
de ir vê-las” era o que se comentava na aldeia.
Com o frio da serra, passaram meses
seguidos, enfiadas no quarto, com os aquecedores pedidos emprestados.
A avó costumava dizer que eram um quilo de
arroz, cabiam na palma de uma mão, tinham medo de lhes dar banho com medo que
se partissem e o banho era dado numa bacia da cozinha.
E assim foram crescendo duas meninas
alegres e bem-dispostas e sempre prontas a fazer traquinices.
As brincadeiras daquela altura eram na
rua, tudo servia para brincar, as folhas das árvores, as pedrinhas do chão….
Aos cinco anos ganharam um primo, filho de
uma irmã da mãe. Era como se fosse o irmão que não tinham e passou a ser o alvo
preferido das brincadeiras das manas.
Nas férias grandes também ganhavam uma
amiguinha, vinha da cidade grande (Lisboa, pois claro) passar as férias com os
avós e passavam tardes inteiras encavalitadas nas oliveiras a cantar as canções
novas que tinham aprendido.
Certa tarde resolveram ensinar o priminho
a jogar às escondidas e de repente quando começaram a chamar por ele, este não
aparecia.
A avó ficou em pânico pois era quem tomava
conta dos netos junto com uma tia-avó e desatou aos berros que lhe tinham
roubado o menino.
Foi a confusão naquela aldeia, onde nunca nada
acontecia, as pessoas começaram a acorrer ao cabeço, assim se chamava o sítio
onde moravam, por ficar num sítio alto em relação ao resto da aldeia.
Passadas umas horas, claro que encontraram
o pequeno atrás de uma porta da cozinha, ao ser questionado porque não
respondia, remeteu as responsabilidades para as primas “as primas disseram para
eu não responder mesmo que ouvisse chamar”, claro que depois disto tudo sobrou
para quem? – Para as primas.
Uma das brincadeiras preferidas das gémeas
era irem para o palheiro do avô apanhar ouriços-cacheiros. – Sim é verdade,
achavam um bichinho simpático e nem toda a gente conseguia apanhá-los, pois tem
de se ter alguma mestria senão eles enrolam-se e depois nada feito.
Colocavam os bichos dentro de um saco
plástico e penduravam no estendal da roupa e depois ficam ali sentadas, no chão
a ver qual dos bichos rompia o saco e caía primeiro.
Aliás estas meninas tinham uma certa queda
para os bichos e para andarem a brincar perdidas pelos campos a fora.
Outra altura em que tinham lá a amiga de
Lisboa, decidiram ir até ao recreio da escola primária. – Sim existia uma
escola primária na aldeia e naquela altura andavam lá umas vinte crianças,
neste momento já só existe o edifício velho, gasto pelo tempo.
Por entre uns tijolos que estavam
amontoados a um canto do recreio, eis que descobriram, um morcego bebé,
minúsculo, todo pelado e escorregadio.
Resolveram logo ali que tinham de levá-lo
para casa para tratar dele, qual aventureiras em busca do desconhecido, lá levaram
o morcego e colocaram-no em cima do muro de casa da avó.
Estava a escurecer e enquanto discutiam o
que um morcego comia, ouviram-se uns guinchos muito agudos e as três meninas só
tiveram tempo de baixar as cabecinhas.
Quando voltaram a levantar-se e olharam
para o muro o bichinho tinha desaparecido, ficaram muito tristes mas perceberam
que a mãe dele o tinha vindo buscar e portanto estaria bem melhor.
Numa das vezes em que a mãe as deixou ir
com o avô resineiro para o pinhal, voltaram com uma coderniz, resolveram que
tinham de ficar com ela e lá convenceram a tia a arranjar-lhes uma gaiola para
colocar a ave.
Andaram meses naquele entusiasmo, a cuidar
do bicho, mas um belo dia - morreu.
Catástrofe das catástrofes, ficaram
desoladas, choraram dias a fio e até fizeram um funeral á bichinha e tudo.
Numa outra ocasião, estavam na cozinha á
espera que a avó terminasse de fazer o caldo trigo (umas papas feitas de água
com farinha e açúcar), que elas adoravam. Elas tinham dito á avó que estavam doentes
e com dores de barriga, quando uma vizinha vai chamar ao portão.
A senhora estava a pedir à avó para deixar
ir as meninas numa novena (uma promessa feita a uma santinha em que tem de se
levar em procissão dez meninas) e que depois lhes dava o lanche, a avó disse
que tinha pena mas que estavam doentes.
Ao ouvirem isto, as pequenas saem
disparadas de traz da porta, descem as escadas a correr e a dizer que já não
estavam doentes - eram espertas as miúdas.
Assim lá foram passear e comeram as papas
na mesma quando regressaram.
Adoravam passar as tardes com os avós pois
estes contavam-lhes histórias de quando eram novos incluindo as músicas que o
avô cantava para a avó quando já noite dentro passava à sua porta, antes de ir
para casa – Antigamente não havia carros e motas eram poucas, de maneira que o
avô calcorreava um par de quilómetros para ir aos bailes na terra da avó:
Ando por aqui de
noite
Não faço mal a
ninguém
Quem estiver na
sua cama
Deixe-se estar que
está bem.
Tenho
sono de galinha
A
galinha dorme em pé
Este meu sono
menina
Causado por você
é.
Eu prendi o sol á
lua
As estrelas ao
luar
Cozi o meu coração
ao teu
Com linhas de
alinhavar.
Nas telhas do teu
telhado
Tenho um cigarro
escondido
Cala-te e não
digas nada
Que eu ando de
amores contigo.
Esta noite chove, chove
Uma chuva miudinha
Se chover na tua
cama
Anda amor vem ter
á minha.
E quando um dia o tio mais novo resolveu ensiná-las
a jogar à bola em frente de casa da avó e de repente – Ups!!! Partiu-se um
vidro!!! E toca a fugir antes que a avó apareça…
Também foi por causa desse tio, que vinha
da cidade grande, que elas na altura já na escola primária deixaram de
acreditar no Pai Natal.
Nessa noite encantada, tinham de deixar
uma meia pendurada na chaminé para o Pai Natal deixar as prendas e na manhã
seguinte era uma correria para ir espreitar o que estava nas meias, (por norma,
uns rebuçados, o famoso chapéu de chocolate, uma peça de roupa e um brinquedo).
Houve um ano em que estavam em casa dos
avós, já depois do jantar e as manas resolveram dar uma fugida até sua casa,
que ficava mesmo ao lado e não disseram nada a ninguém. Claro que ao chegarem à
cozinha apanharam o tio em flagrante a colocar as coisas nas meias - foi choro
até conseguirem adormecer.
Mas nem tudo era brincadeira e desilusões
e cedo aprenderam que a vida não era fácil.
Havia sempre muito para fazer na aldeia e
cedo começaram a ajudar os pais nas lides domésticas e no campo.
A parte que custava mais era ter de
levantar muito cedo e com muito frio para ir com os pais para a fazenda nos
dias de sementeira.
Tinham de ajudar no que a idade lhes
permitia, normalmente faziam de meninas de recados:
- Vai à mina buscar este cântaro de água à
mãe.
- Vai dar estas sacas ao tio que está no
campo de baixo.
- Traz cá o cesto da comida para dar às
pessoas.
Era isto o dia inteiro, mas a tudo as
meninas assentiam com um leve suspirar.
A parte que ambas mais gostavam era de ir
buscar água á mina pois podiam ficar ali um bocadinho a observar as rãs na
beira da água.
Outro dia cansativo era o da apanha do
milho, não gostavam mesmo nada, normalmente estava calor e tinham de vestir
mangas compridas e collants, porque andar por entre o milho, sem ser
resguardadas ficavam com os braços e as pernas cheias de comichão, de maneira
que era preferível aguentar o calor.
Mas a parte mais divertida vinha no fim do
dia, apesar de todos cansados, reuniam-se à volta do monte de espigas e
começava assim a descamisada, ou seja, tirar a camisa às maçarocas do milho.
Todos ficavam contentes e os tios, avós e primos todos cantavam canções alegres
e divertidas e apesar de nem sempre as gémeas entenderem o que se cantava
achavam piada e divertiam-se bastante.
Ó
lugar da Derreada
Não
és vila nem cidade
És
um lugar pequenino
Onde brilha a
mocidade.
Ó lugar da
Derreada
Para baixo correm
as bicas
Sempre foste e
hás-de ser
Lugar de moças
bonitas
Ao passar o vale
jestoso
Ao ramal da
Ervideira
Com a sua janela
aberta
Vê-se o alto da
Louriceira.
É verdade que era uma vida dura e sem
grandes mordomias, mas as meninas gostavam muito dos serões passados à volta da
lareira, com o pai a contar histórias de quando era rapaz novo e namoradeiro e
das canções que se tocavam nos bailaricos ao som da concertina:
O
ladrão do meio
É
bem azadinho
Para
namorar
Tem belo jeitinho
Rouba ladrão,
rouba
Se sabes roubar
Rouba uma menina
Que te saiba amar
Já cá vai roubada
Já cá vai na mão
Já cá vai ao lado
Do meu coração
O ladrão do meio
É alto demais
Por isso lhe
chamam
O espanta pardais.
Aos Domingos lá iam os quatro
encavalitados na motorizada, fazer uma dúzia de quilómetros para almoçarem com
os avós paternos, era uma viagem atribulada pela serra mas de que elas
gostavam.
Só havia um televisor grande que estava na
sala de estar e este só se ligava ao fim de semana, durante a semana era dia de
escola e não havia televisão para ninguém e ordens eram ordens - cumpriam-se
religiosamente.
E por falar em escolinha, ainda hoje no
recreio da velhinha escola primária, lá estão de guarda as enormes árvores que
as meninas plantaram num qualquer dia da árvore.
Nas tardes de inverno e quando já mais
crescidinhas, lá iam elas para os quintais e pinhais há procura da iguaria da
época, cogumelos e míscaros, estes últimos eram bem mais difíceis de encontrar
pois tinham de andar há procura debaixo das carumas dos pinheiros.- Hum !!! Mas
eram tão bons, quando a mãe fazia arroz de míscaros ou cogumelos assados na
brasa.
Depois havia a altura da vindima (essa
parte elas gostavam mais), pois entre um cacho e outro lá iam comendo umas
uvas.
Mas o que mais gostavam era mesmo de andar
atrás dos homens a ver todo aquele processo de levar o esmagador para a adega e
de ficarem sossegadinhas (para não atrapalharem) a verem esmagar as uvas, gostavam
daquele cheiro inebriante.
São tantas recordações boas…. Tudo faz parte
de um passado e de uma história que nunca será apagada.
Uma dessas meninas sou eu, que hoje virou
mulher de quarenta, mora na cidade grande – Lisboa, vai visitar a família
incluindo a mana gémea à aldeia, no interior centro de Portugal e faz questão
de contar aos filhos a sua infância e levá-los a experenciar muitas coisas que
também ela fez em pequena. E como não podia deixar de ser tornar as suas
histórias de infância eternas ao deixá-las escritas.
Carla Santos Ramada
Junho 2016
In colectânea "Décadas" da Papel D'Arroz
terça-feira, 3 de maio de 2016
Menina Mulher
Menina perdida,
Menina que brinca no chão de terra batida.
Menina alegre e traquina,
Menina que virou mulher,
Mulher num corpo de menina.
E a vida assim quis,
Que continuasse perdida,
Perdida em busca de sonhos,
Sonhos que se desfazem na espuma do mar.
E luta,
Luta,
Contra a maré - só quer amar.
Há-de chegar a sua hora
Há-de apanhar boleia nas asas de um condor
E conseguir alcançar os sonhos que habitam as nuvens
E ganhar força e coragem para viver de amor.
E transforma-se em
leoa
Que protege quem ama
Que ri mesmo que quando por dentro a sua alma chora
Mas quando o vento sopra forte e a tempestade avança
Prefere a solidão e chora,
Chora,
Chora até que o vento acalme e a tempestade passe,
Qual árvore de raízes profundas
Não tomba, e seus galhos são o refúgio de muita gente
Os que tais que ama, mas que por vezes se engana…
Mas espera,
Espera a tempestade ir embora.
E as suas lágrimas fortalecem as raízes
Que a ligam à terra.
Sim é uma menina mulher,
Que ri
Que brinca
Que grita
Que desespera
Que cai
Que se levanta
Que volta a cair….
E volta a levantar-se
Que continua de pés descalços na terra batida
A criar raízes ….
Para continuar ligada à vida.
Carla Santos Ramada
Abril 2016
In "Perdidamente - Antologia de Poetas Lusófonos Contemporâneos"
domingo, 1 de maio de 2016
Ser Mãe
Mãe,
A palavra que muda tudo em ti, deixas de ter nome, passas a
ser "a Mãe de …."
A vida ganha outra forma, outra cor e ganhas medos que antes
não tinhas.
Medo de não seres capaz, medo de te acontecer alguma coisa e
deixares aqueles seres indefesos, sem o teu colo, medo que lhes aconteça alguma
coisa…..
Mas também passas a ter nervos de aço,
A ultrapassar o teus
medos,
A ir buscar forças onde achavas que já não tinhas,
Porque existe alguém
que depende de ti, que não escolhe quando fica doente.
Aprendes a controlar os teus sentimentos,
A rir quando tens
vontade de chorar,
A brincar quando só te apetece estar deitada….
Passas a dar importância ao estado do tempo, antes não te importavas
se ia chover ou estar vento, agora quando acordas é das primeiras coisas que
fazes ainda deitada e de telemóvel na mão, pois se algum se constipa é uma
chatice.
A vida ganha outra dimensão, sabes que desde o momento
que és Mãe, é para sempre.
Sabes que um dia vão voar, tu própria os vais ensinar, voos
pequenos em que sabes que voltam sempre ao ninho, mas um dia voarão de vez.
Tu ficarás lá, com o ninho preparado para quando algum dos
teus rebentos quiser voltar...
E ficarás sempre ali, onde eles sabem que te podem
encontrar….
Porque uma vez Mãe,
Mãe para sempre.
1 de Maio 2016
Carla Santos Ramada
terça-feira, 12 de abril de 2016
A Beatriz e os Amigos
Os ovos escondidos
Era Domingo de manhã e a Beatriz acordou inquieta, já
tinha combinado que ia passar a manhã com os amigos no parque.
Acordou o irmão e os dois correram para o quarto dos
pais.
- Pai, Mãe!!! – gritaram em uníssono.
- Já acordámos.
E lá conseguiram tirar os
pais da cama e lá foram ter com os amigos ao parque de Monsanto.
Eram nove e meia da manhã
e a Beatriz estava ansiosa, não parava quieta, era a primeira vez que os pais a
deixavam ficar o dia inteiro com os amigos, também já tinha dez anos.
Os avós do André tinham
uma casa em pleno parque e como ela adorava andar pelo meio da natureza, já
andava há muito tempo a pedir aos pais para a deixarem ir passar o dia a casa
dos avós do amigo.
Assim os pais lá acordaram
um dia e eis que esse dia tinha finalmente chegado.
Ouvidas as recomendações
finais lá se despediram dos pais e ficaram enfim sós, quer dizer, eles e os
avós do André.
Depois de deixarem as
coisas em casa, os cinco amigos lá foram explorar a natureza em redor da casa.
A Beatriz Ramada, daqui
para a frente Beatriz R, a Beatriz A, a Joana, o Guilherme e o André eram
colegas de turma mas também grandes amigos e adoravam explorar coisas novas.
A manhã estava primaveril,
ouviam-se os grilos e os pássaros a chilrearem nas árvores, cheirava a terra
húmida ainda do orvalho que se percebia nas ervas molhadas do chão.
O André seguia á frente,
pois conhecia bem aqueles caminhos e tinha prometido ao avô que não se afastava
muito e ao meio dia estavam em casa, de qualquer modo levaram telemóvel para o
caso de ser preciso.
- Olha!!! Exclamou a
Joana, o que é aquilo que está ali? Apontou para uma árvore.
- Ó sua tonta!!! São só
umas pinhas.
- Parecia um animal que
estava pendurado na árvore.
Riram-se todos com a
observação da Joana e continuaram o caminho.
- Esperem por mim, já
estou cansada, ainda vamos andar muito? Perguntou a Beatriz R. Era a que menos
gostava de andar mas talvez a mais curiosa do grupo.
- Não sejas chata, resmungou
o Guilherme.
-Olha, olha ali!!! De novo
a Joana a apontar para uma árvore.
- O que foi agora, estás a
ver mais pinhas é? Questionou a Beatriz A.
Mas a menina continuava.
- A sério!! Não façam
barulho, está ali alguma coisa.
O André olhou mais atento para
onde a amiga apontava.
- Sim é verdade, está ali
um animal pequenino, não o assustem.
- Chiuuu!!! Ordenou a
Beatriz R. já mais interessada.
- É um esquilo.
- A sério?
- Sim, afirmou muito
seguro o André.
Ficaram os cinco parados e
em silêncio a observar o bichinho, mas este logo deu conta da companhia e
desapareceu.
- Que giro, vi um esquilo.
As meninas ficaram muito entusiasmadas e foram um grande bocado a falar do
assunto.
- Já vos disse que estão a
ficar chatas, não se calam com a história do esquilo.
- Ó Guilherme pá não sejas
assim, resmungou a Beatriz R.
- Também acho, devolveu a
Beatriz A.
Uns metros mais á frente,
as meninas, mais uma vez a fugir às regras e a saírem da estrada de terra
batida para se irem enfiar pelo meio dos fetos e das urzes que começavam a
deixar abrir umas flores amarelas.
- Venham para aqui. Berrou
o André, qual Capitão sempre preocupado em manter a tripulação junta.
Mas elas teimosas, nem lhe
deram ouvidos.
- Vocês vão perder-se,
disse o Guilherme.
Já mais ao longe,
ouviu-se:
- Esperem aí por nós.
Sem grande vontade, lá
ficaram eles plantados no meio do caminho, esperando as donzelas.
- Venham cá!!! Estão a
ouvir?
-Olha são elas, estão a
chamar-nos, espero que não se tenham magoado.
- Achas?? Retorquiu o
Guilherme, despreocupado.
Lá se enfiaram pelo meio
do mato em busca dos sons que elas iam fazendo.
- Bolas que vocês vieram
para longe, reclamou o André.
- Mas o que estão a fazer
as três aí agachadas?
- Devem estar a fazer
chichi, riu-se o Guilherme.
- Não sejam parvos, disse
a Beatriz R, venham cá ver.
Ao aproximarem-se viram um
ninho com três ovos pequeninos castanhos com pintas pretas.
- Isso é um ninho, mas
onde anda a mãe?
- São ovos de quê? São tão
pequenos? Inquiriu a Joana
- De galinha não são,
esses são maiores, atalhou a Beatriz R.
- Escutem, estou a ouvir
um barulho, disse André.
Voltaram-se á procura de
onde vinha o barulho e encontraram uma ave pequena, encolhida nomeio dos fetos.
- Ó coitadinha, parece que
está doente.
- Pois e deve ser a dona
dos ovinhos.
- Não sei que ave é, disse
o André, mas tenho uma ideia.
E assim resolveram trazer
o ninho com os ovos e a pobre ave para casa do avô, de certeza que este saberia
que ave era e ia ajudá-la.
O caminho de volta para
casa foi muito devagarinho com medo de deixarem cair o ninho ou de magoarem
mais a ave.
Ao chegarem a casa, todos correram
para mostrar ao avô o que tinham encontrado.
Depois de colocarem o
ninho e a mãe numa gaiola, todos se sentaram em silêncio para ouvir as
explicações do avô.
Aquela ave é uma coderniz,
é da família das galinhas mas mais pequena e não é uma ave doméstica, por isso
é difícil tê-la a viver muito tempo presa numa gaiola.
- Então quer dizer que
temos de a soltar?
- Oh! Não podemos ver
nascer os seus filhotes? Perguntou a Beatriz R.
- Tenho muita pena, mas
assim que ela estiver melhor temos de a voltar a colocar no seu ambiente, não
vivem bem assim, vai acabar por morrer, percebem?
Os meninos ficaram
tristes, mas entenderam e pelo menos ainda podiam cuidar dela durante o dia.
Passaram a tarde a olhar
para a gaiola, estavam curiosos e preocupados com aquela pequena ave. Deram-lhe
água, comida e até lhe puseram um nome.
- Então se todos estão de
acordo, vai chamar-se Nica.
E assim se passou a tarde.
Quando regressou a casa a
Beatriz R. vinha cansada mas cheia de novas histórias que podia escrever,
pintar e contar aos pais e ao mano mais novo.
- Pais, obrigado por me
deixarem passar o dia com os meus amigos, adorei.
A Beatriz estava ansiosa
por contar todas as aventuras que tinha vivido ao irmão mais novo, mas estava
tão cansada que adormeceu no carro a caminho de casa.
Iria com certeza sonhar
com todas aquelas aventuras.
Carla Santos
Ramada
10 Abril de
2016
Subscrever:
Mensagens (Atom)