quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

O Fim do Mundo



Corria o ano de 1927, o tempo ia muito frio, Fevereiro estava a terminar e a serra estava coberta por um manto branco.
Anoitecia cedo e os passos de António Vadio, assim era conhecido na aldeia, já se ouviam a derreter a neve do caminho.
Plock!!Plock!! Plock!! Pedrinhas a bater na janela do quarto da Mariazinha.
- Chiuuu!!! Queres acordar o mê pai – segredou por entre a janela entreaberta.
- Anda!!! Bimte buscar coração…
- Estais bom dessa cabeça? Como queres que saia daqui home?
- Sim, eu sei que sou o teu home mas nã ma deixes assim avespedo sem ti.
- Aespera por mim ai imbaixo faxavore … e calado.
O rapaz virou costas a esfregar as mãos de contente, já andava de namoro com a rapariga “mai” linda da terra fazia um bom par de meses e ainda nem um beijinho lhe tinha conseguido roubar.
A moça abeirou-se dele com um sobretudo e um xaile pela cabeça, mas aqueles olhos verdes reluziam na noite escura.
- Tava a ver que não, posso ta dar um beijinho? Oh vá lá coração…
- Escusas de fazer beicinho que já te disse que daqui nã levas nada até me prometeres que vais falar cô mê pai pra gente casar.
- Já disse que falo, mas agora a modos que nã é boa ideia né? Nã disseste que ele andava todo enxofrado por casa que o tê irmão lha tinha arranjado uns sarilhos com a filha do zé da venda?
A rapariga encolheu os ombros.
- Pois, antão ficamos aqui a conversar um bocadinho e prontos.


Naquela aldeia plantada no alto da serra a vida não corria, deslizava lentamente ao sabor do tempo.
Quando chegava a sexta-feira era dia de amassar a farinha para fazer as broas no forno e todas as telhas das casas transpiravam o fumo quente que deixava no ar o cheirinho a pão acabadinho de cozer.
A Mariazinha estava numa dessas tardes a amassar o pão quando a mãe se abeirou da porta de madeira entreaberta:
- Filha, a mãe já volta, vou com a ti Soldade do lugar à capela, parece que se passa pra lá quaisquer coisa.
Antes que a rapariga pudesse responder a mãe já tinha desaparecido pela porta do quintal.

- Antão o que se passa praqui?
- Ai voçemessê  ainda nã sabe?
- Ora se istô a precurar …
- A ti Maria mais a ti Conçeição istão as duas ali adentro da sacristia a rezar, dizem que viram um sinal e que o mundo vai acabar…
- A modos que ódespois de amanhã já cá nã está ninguém.
-Ora esta?? Querem lá ver que as beatas ficaram malucas de vez?
As outras mulheres benzeram-se perante aquela frase que soava a blasfémia.
- Nã digas isso Fernanda, Deus inda te castiga….
- Queres ver que já nã passo desta nôte??
O grupo de mulheres que se ia amontoando dentro da pequena capela, estava indignada com a descrença da vizinha.
Aos poucos a mulher foi-se convencendo do que as outras contavam.
As beatas, de joelhos uma de cada lado do altar e com um véu branco (sinal de pureza claro está…) rezavam ferverosamente uma ladainha difícil de perceber, até para os mais crentes.
A mais velha ergue-se do chão de pedra com os joelhos já quase em ferida e de braços abertos:
- Em nome de Deus todo- poderoso, peço-vos que trazeis para a casa do senhor todas as pessoas, algo terrível vai acontecer antes do amanhecer, todos tem de confessar os sês pecados pra entrarem puros no céu.
Gerou-se um burburinho e as mulheres começaram a correr cada uma para seu lado desorientadas.
A noite começava a cair e o vento frio já assobiava nos pinhais.


-Maaaaria!!!! Berrou a dona Fernanda exaurida no meio do Páteo.
- Aiii!!! Que foi mãeeee, ca desassossego é esse?
A rapariga assomou à porta da casa da lenha onde se cozia a primeira fornada de pão.
- Anda daí, tens de vir comigo pra capela.
- Mas o quêii? Ora agora???
- Nã faças perguntas, tira o avental e calça os sapatos de Domingo.
A moça assim fez, ainda que contrariada.
-Ãntão e o pai?
- Esse há-de dar conta de nós na capela, nã te rales.


Saíram ao portão para fora sob o olhar atento do António Vadio, que esperava uma oportunidade para estar com seu amor.
Não sabia o que se estava a passar, mas o sino da aldeia começou a tocar e as duas mulheres começaram a correr ladeira acima, ele seguiu-as.
A Mariazinha foi empurrada pela mãe para dentro e quase não se conseguiam mexer, parecia o metro em hora de ponta – muitos anos à frente e já no novo mundo com certeza.
As duas mulheres continuavam no altar a dizer que estavam ali como representantes de Deus, enquanto uma dizia que era o anjo São Gabriel a outra dizia que era o arcanjo São Rafael.
Todos tinham que se confessar e perdoar os pecados uns dos outros senão iam arder no lume do inferno.
As crianças pequenas choravam de fome e de sono ao colo das mães - sem perceberem nada do que acontecia.
Os jovens casais abraçavam-se e prometiam amar-se até à eternidade - que seria já ao amanhecer.
O Ti Manel da mercearia disse que perdoava todas as dívidas se o mundo acabasse - porque senão tinham de pagar na mesma.
Ouviu-se a coruja a cantar, o céu ficou escuro como bréu e todos começaram a rezar abraçados uns aos outros – todos, menos o António, esse que tinha Vadio no nome.

A Mariazinha alcançou António com os olhos, estava especado na porta da capela.
Ficou num desassossego, deixou de ouvir as rezas das beatas e muito menos as recomendações da mãe.
Enquanto toda a gente parecia que estava a entrar em transe, os dois pombinhos não conseguiam desviar os olhos um do outro.
Após uns olhares e uns sorrisos maliciosos a moça foi-se desenvencilhando dos braços da mãe e de repente sentiu uma mão forte a agarrar-lhe o braço.
- Que estás a fazer Tónio? Estás doido?
- Chiu!!! Anda comigo!
Tentou arrancá-la da porta da capela, mas a rapariga vacilou.
- Como queres que sai daqui? Nã percebeste o que está pracontecer home??
O rapaz era astuto e percebeu que tinha ali a sua oportunidade.
- Sim, ê percebi muito bem, Deus é nosso amigo e fez aquelas beatas ficarem malucas da cabeça pra nóis ficarmos juntos, melhor só mesmo nos filmes.
- Ai credo (benzeu-se três vezes), nã digas isso que Deus castiga.
António puxou-a contra si e encostou a boca ao seu ouvido.
- Nã me digas que nã queres estari aqui com o tê Tónio? Susurrou.
Ele sentiu o corpo da amada tremer e os seus olhos verdes reluziram fixando os seus.

Correram os dois de mãos dadas pela noite escura, a rapariga passou os sapatos dos pés para as mãos e descalça, desceram a ladeira que há pouco tinha subido com a mãe.
O seu vestido de chita verde- esmeralda como os seus olhos, balouçava de contente e o seu xaile levantava voo.
Mariazinha deixou-se guiar pelo amado.   
O rapaz escancarou a porta pesada de madeira do palheiro e mergulhou com ela na escuridão do casebre.
- Mas home e se o mundo for acabar e nóis istamos praqui??
- Ai mulher vais veri, que o mundo vai mas é começari agora.
- Espera Tónio, e se a minha mãe dá conta de mim? Fico perdida e ósdespois ninguém me quer…
Antes que conseguisse dizer mais alguma coisa (sim porque o rapaz estava com pressa, não fosse o mundo acabar mesmo e ele ficar à mingoa) enrolaram-se os dois no meio da palha e enquanto os sinos tocavam a repique, a Mariazinha via estrelas cadentes por entre as traves de madeira do casebre.
O mundo não tinha acabado, estava apenas a começar e este era apenas mais um capítulo do filme das suas vidas.




Carla Santos Ramada
In "Saloios & Caipiras"
Sui Generis -2017