Em 2014 a Síria estava mergulhada numa
guerra civil sem fim à vista, a vida da jovem Nhaíla mudou radicalmente, já não
ia à escola e nem sequer saía de casa. Na madrugada fria de Março de 2014 a
família foi obrigada a abandonar o lar, ouviam-se bombardeamentos por todo o
lado, deixaram tudo para trás, com os olhos a transbordar de água - Nada mais
havia a fazer.
A menina era agora uma jovem cuja beleza
não passava despercebida, por isso mesmo, a mãe estava sempre a chamá-la a
atenção para esconder o mais que pudesse o rosto com o lenço.
Seguiram como animais em busca de pasto,
uns atrás dos outros com a trouxa às costas, por caminhos íngremes, de terra
batida. Apesar de só levarem as roupas e pouco mais, a rapariga fez questão de
não deixar para trás a viola, que disse aos pais ter encontrado.
Foi assim que chegaram ao campo de
refugiados na Turquia, Suruç. Havia ainda poucas tendas espalhadas pelo
descampado, que não tinha sequer água canalizada nem luz.
Os primeiros dias foram uma tormenta,
não estavam habituados a viver naquelas condições, os irmãos mais novos
passavam os dias a chorar, a mãe ouvia-se soluçar baixinho, quando a luz do
candeeiro se apagava e se deitavam em cima de umas mantas no chão, a servir de
cama e o pai passava os dias macambúzio.
Nhaíla por sua vez, passava os dias
calada, agarrada à viola a dedilhar umas melodias, assim sempre aquele cenário
lhe parecia doutra cor.
Todos os dias chegavam dezenas, milhares
de pessoas deslocadas das suas casas, a Síria parecia que estava a mudar de
sítio, as vozes que se ouviam falavam a sua língua, os cheiros eram os do
costume, a especiarias, tudo lhe fazia lembrar que estava no seu país.
Mas depois abria os olhos e voltava à
dura realidade, aí também ela deixava as lágrimas escorrerem pela sua face, o
que seria a sua vida apartir dali.
Um dia apareceram uns homens, não eram
Sírios e vinham bem vestidos, um deles com longas barbas grisalhas e entraram
na sua tenda.
Falaram em Inglês com o seu pai, este ia
ficando cada vez mais constrangido, pois sabia perfeitamente que a filha mais
velha percebia muito bem o que estavam a falar.
Não quis sequer ouvir o resto da
conversa e saiu disparada da tenda.
Correu desenfreada, descalça pelo chão
de terra, com os cabelos soltos ao vento agreste do fim do dia.
Quando já não tinha mais forças,
deixou-se cair naquela terra avermelhada, como o sangue, que agora lhe corria
com tamanha intensidade nas veias, parecia que ia rebentar.
Tinha ouvido perfeitamente bem, a
proposta que ouvira, incluía vendê-la ao homem das barbas e este assegurava que
o resto da família chegava em segurança à Europa.
O que deveria fazer, aceitar o seu
destino, entregar-se àquele homem muito mais velho e garantir que a sua família,
conseguiria começar uma vida nova na Europa? Ou desaparecer e procurar ela uma
nova vida longe de todos?
Ficou ali, deitada no chão, como uma
boneca abandonada.
Acordou com os primeiros raios de sol a
bafejarem o seu rosto de tês morena e custou-lhe despertar para a realidade em
que se encontrava.
Nhaíla levantou-se decidida, ajeitou a
túnica verde e bordada a dourado, sacudiu-lhe o pó e amarrou o cabelo com o
elástico que trazia no pulso, tinha tomado uma decisão, já tinha quinze anos e
não ia ser moeda de troca.
De regresso à sua tenda, encontrou todos
em sono profundo, deviam ter andado à sua procura - pensou e sorrateiramente,
retirou umas moedas da bolsa que o pai trazia sempre presa à cintura, colocou
algumas peças de roupa numa sacola de pano e retirou um lenço preto da mãe.
Depois colocou o lenço em volta da cabeça, a sacola a tiracolo juntamente com
um cantil de água, uns bolos secos e um pão. Agarrou na viola, deitou um último
olhar triste aos irmãos e aos pais e saiu da tenda.
Enquanto caminhava com uns chinelos a
calcar a terra batida, limpou uma lágrima teimosa do rosto e seguiu caminho.
Era certo que olhando para ela todos
pensariam que se tratava de uma mulher mais velha, pois estava com o lenço da
mãe e a túnica, mas não deixava de ser uma mulher, logo já tinha percebido que
seria uma presa fácil, mas iria conseguir, pensou.
A solução pareceu-lhe viável quando
vislumbrou na berma da estrada de asfalto, por onde seguia, um grupo de homens
e mulheres também eles com a casa às costas, não tinha dúvidas também estavam
em fuga. Assim juntou-se ao grupo, que ficou a saber iriam tentar arranjar
passagem para a ilha Grega de Cós, com um passador.
Quando o grupo entrou na pequena aldeia,
percebeu logo pela longa fila que terminava numa praça, que todos iam em busca
da mesma pessoa. Esperou pacientemente pela sua vez, não sabia bem o que havia
de dizer, mas sabia que certamente teria de pagar a sua passagem.
Retirou da sacola umas moedas e começou
a contar, não era muito dinheiro, tinha 50 libras Sírias, apertou com força as
moedas na mão na esperança de conseguir.
Ao chegar a sua vez, a jovem deu de
caras com um homem de meia-idade, barba curta e negra e ombros largos, tinha um
olhar altivo - Tremeu, sentiu a voz faltar-lhe, aquele homem fê-la sentir-se
muito pequenina.
Depois de repetir a frase que ouvira aos
outros que seguiam à sua frente e sempre com o olhar preso ao chão, ouviu o
homem dizer que dela não queria o dinheiro.
Nesse instante, o sangue gelou-lhe nas
veias e olhou o seu interlocutor, ele passou-lhe a mão áspera pela face,
esboçou um sorriso de escárnio e disse que lhe dava a passagem se ela passasse
a noite com ele.
O tempo parou, reviveu todos os momentos
que tinha passado para chegar até ali, viu passarem-lhe à frente dos olhos,
aquele homem de barbas grandes a dizer ao pai que a queira levar e agora
encontrava-se encurralada numa situação igual.
Sem querer, as lágrimas corriam livremente
pela sua face, desta vez viu Pedro, o seu amigo de quem tinha tantas saudades.
Voltou à dura realidade quando foi
sacudida pelo homem impaciente, que queria uma resposta.
Limpou as lágrimas, olhou o homem nos
olhos e limitou-se a fazer um aceno afirmativo com a cabeça.
O dia ainda não tinha amanhecido e já
Nhaíla caminhava, hirta, os passos certos marcavam o compasso de um coração
descompassado, seguia automaticamente, como um robôt. Os seus olhos estavam
secos, sem brilho, já não tinham mais lágrimas, o sangue ainda lhe escorria
pelas pernas e a sua túnica estava manchada.
Seguia em direcção a um ribeiro que
existia à saída da aldeia, despiu a túnica e entrou na água gelada - Talvez
assim se purificasse.
Eram sete da manhã e quando chegou junto
ao ponto de encontro que o seu carrasco lhe tinha indicado, já se encontravam
lá muitos outros. Reparou que existiam outras jovens e não deixou de se
interrogar, porquê ela? Porque foi a escolhida? Seria castigo? Decerto merecia
tal castigo, por ter deixado a sua família ao abandono.
Ao chegar perto do barco, repetiu o nome
que o passador lhe tinha indicado e deram-lhe um cobertor e um saco com pão e
água.
Encontrou um canto e acomodou-se. Encostou-se
à viola e enroscou-se no cobertor, começava uma viagem sem retorno, mas tinha
escolhido viver em vez de ir morrendo aos pouco, nas mãos de alguém que a iria
transformar num mero objecto.
Carla Santos Ramada
In "Fúria de Viver" da Sui Generis