segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

O Natal da Branquinha e do Seroulas



Olá
Eu sou a Branquinha, uma jovem ovelha que foi rejeitada pela mãe e que foi criada pela dona da quinta, que gosta muito de mim e me dá muitos miminhos.
Hoje a manhã está fria, não apetece nada sair do quentinho da cozinha, ainda com o cheiro das castanhas assadas no fogão de lenha na noite anterior, mas acordei cheia de energia pois o Natal está quase a chegar.
A D. Guilhermina acorda cedo e começa logo um reboliço naquela casa, é uma senhora muito simpática, que adora fazer bolos e ter sempre a casa cheia com os filhos e os netos.
Tem duas netas gémeas muito endiabradas, bem sei que deve ser dos seus oito anos, mas andam sempre atrás de mim para fazerem penteados do meu pêlo branco e sedoso e para me vestirem a roupa que fazem dos trapos velhos que encontram.
Depois existe o Pedrinho, tem 6 anos e acho que não gosta muito de mim, pois quando me apanha sozinha, puxa-me as orelhas e o rabo e tenho de andar sempre a correr para fugir dele.
Falta falar do meu amigo de quatro patas, o burro Seroulas, também vive cá em casa e dividimos os aposentos no canto da cozinha, nasceu cá em casa e a mãe dele morreu logo a seguir e claro que a senhora cuidou dele.
Acho que, como vive sózinha, pois o Sr Zé já morreu há muito tempo, ela adoptou-nos como filhos.
Já é o segundo Natal que vou passar com ela, mas para o Seroulas é o primeiro, estou mesmo empolgada.
Os netos chegam sempre uns dias antes para preparem o presépio e irem com a avó escolher um pinheirinho bonito, para depois enfeitarem com fitas de várias cores e algodão para parecer neve.
Reparei no ano passado que, junto do menino Jesus está sempre uma vaca e um burro, já estive a falar com o meu amigo e este ano quero ser eu a ficar ao lado do menino, eu de um lado e o Seroulas do outro.
Vamos ter de convencer todos que em vez de um burro e uma vaca de barro, é muito mais giro terem dois animais de verdade a guardar o menino Jesus.

Antes da véspera de Natal chega a animação a casa.
- Avó!!!!! Chegámos….
- Ó meus queridos, já estava com tantas saudades vossas!
- Ainda cá tens a Branquinha e o Seroulas?
- Sim claro, devem andar no quintal, podem lá ir ter mas portem-se bem.

Depois de uns abraços os pequenos vão à vida deles, ver os outros habitantes da capoeira e do estábulo.
- Brrr!!! Enfim descanso.
- Não digas isso amigo, eles estavam com saudades nossas.
-Pois mas aquele miúdo é irritante e ainda não temos nenhuma ideia de como vamos fazer para ficarmos no presépio.
- Olha que tu às vezes és mesmo burro! Então quando as crianças colocarem lá as figuras de barro, nós vamos às escondidas e zás!!!! Partimos os bichinhos de faz- de- conta e depois ficamos sentados lá ao lado.
- Bem, essa boca do burro foi um bocado foleira, mas gostei da ideia.

Ficámos muito sossegadinhos a ver num canto da sala toda a azáfama que se seguiu.
Primeiro chegou o pinheiro verdinho e colocaram dentro de um vazo grande, todo forrado de prata, depois chegou a cabana de madeira e colocaram por baixo do pinheiro, por fim a vaca, o burro, José, Maria, o menino Jesus e um anjinho muito lindo e brilhante, que Pedrinho encavalitou no topo da cabana.
Ficaram ali de volta da árvore a enfeitá-la, estavam numa alegria que até eu fiquei com vontade de me chegar lá perto para ver.
Susurrei  ao Seroulas:
- Até está lindo não está? Os pequenos têm jeito para isto.
- Xiu!!! Não acho nada, fica muito melhor connosco lá.

Quando as luzes se apagaram e os pequenos subiram para a parte de cima da casa para tomarem banho e se prepararem para o jantar de Natal, chegou a nossa vez de entrar em acção.
Avançámos com patinhas de lã, para não derrubar nada, pois a sala já estava cheia de sacos e roupas e doces espalhados pela mesa.
Ao chegar ao pé da cabana, pedi ao Seroulas para ser ele a derrubar as figuras, pois ele é que é o desastrado cá de casa e tinha razão, pois mal aproximou o focinho junto do casebre de madeira, as suas orelhas saltitonas tombaram os animais guardadores do menino Jesus.
Plock!Plock!
A dona Guilhermina que estava com a filha e a nora na cozinha espreitaram para a sala que tinha ligação directa para a cozinha.
Ficámos tipo estátuas, no escuro, até que elas lá continuaram na tagarelice em frente ao fogão.
- Pronto, já está Branquinha, conseguimos! Disse o Seroulas numa excitação que não passava despercebida.
- Agora tu ficas aí sossegadinho do lado do José e eu fico aqui ao pé da Maria.
- Certo e achas que não nos vão correr daqui quando perceberem o que aconteceu?
- Hum!!! A nossa dona é tão boazinha, ela vai achar muito bem vais ver.
- Mas é bom que me vá trazendo palha, porque senão começo a comer a que está no berço do menino.
- És mesmo tonto Seroulas.

Fez-se luz na sala, como sempre foram entrando todos muito bem vestidos e de cabelos arranjados.
De repente alguém gritou:
- Olhem!!!
Nesse instante fiquei muito nervosa, queria mesmo que a senhora não se zangasse connosco, só queríamos participar no Natal.
Depois de um silêncio prolongado, pelo menos a mim pareceu uma eternidade, ouviram-se gargalhadas e todos se juntaram à volta do pinheiro de Natal e da cabana com o menino Jesus e tiraram uma selfie de família.
Que Natal maravilhoso eu e o meu amigo tivemos.

- Mééééé

Carla Santos Ramada
In "Magia de Natal" Antologia Sui Generis
Dezembro 2017

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A menina Coragem


Em 2014 a Síria estava mergulhada numa guerra civil sem fim à vista, a vida da jovem Nhaíla mudou radicalmente, já não ia à escola e nem sequer saía de casa. Na madrugada fria de Março de 2014 a família foi obrigada a abandonar o lar, ouviam-se bombardeamentos por todo o lado, deixaram tudo para trás, com os olhos a transbordar de água - Nada mais havia a fazer.
A menina era agora uma jovem cuja beleza não passava despercebida, por isso mesmo, a mãe estava sempre a chamá-la a atenção para esconder o mais que pudesse o rosto com o lenço.
Seguiram como animais em busca de pasto, uns atrás dos outros com a trouxa às costas, por caminhos íngremes, de terra batida. Apesar de só levarem as roupas e pouco mais, a rapariga fez questão de não deixar para trás a viola, que disse aos pais ter encontrado.
Foi assim que chegaram ao campo de refugiados na Turquia, Suruç. Havia ainda poucas tendas espalhadas pelo descampado, que não tinha sequer água canalizada nem luz.
Os primeiros dias foram uma tormenta, não estavam habituados a viver naquelas condições, os irmãos mais novos passavam os dias a chorar, a mãe ouvia-se soluçar baixinho, quando a luz do candeeiro se apagava e se deitavam em cima de umas mantas no chão, a servir de cama e o pai passava os dias macambúzio.
Nhaíla por sua vez, passava os dias calada, agarrada à viola a dedilhar umas melodias, assim sempre aquele cenário lhe parecia doutra cor.
Todos os dias chegavam dezenas, milhares de pessoas deslocadas das suas casas, a Síria parecia que estava a mudar de sítio, as vozes que se ouviam falavam a sua língua, os cheiros eram os do costume, a especiarias, tudo lhe fazia lembrar que estava no seu país.
Mas depois abria os olhos e voltava à dura realidade, aí também ela deixava as lágrimas escorrerem pela sua face, o que seria a sua vida apartir dali.
Um dia apareceram uns homens, não eram Sírios e vinham bem vestidos, um deles com longas barbas grisalhas e entraram na sua tenda.
Falaram em Inglês com o seu pai, este ia ficando cada vez mais constrangido, pois sabia perfeitamente que a filha mais velha percebia muito bem o que estavam a falar.
Não quis sequer ouvir o resto da conversa e saiu disparada da tenda.
Correu desenfreada, descalça pelo chão de terra, com os cabelos soltos ao vento agreste do fim do dia.
Quando já não tinha mais forças, deixou-se cair naquela terra avermelhada, como o sangue, que agora lhe corria com tamanha intensidade nas veias, parecia que ia rebentar.
Tinha ouvido perfeitamente bem, a proposta que ouvira, incluía vendê-la ao homem das barbas e este assegurava que o resto da família chegava em segurança à Europa.
O que deveria fazer, aceitar o seu destino, entregar-se àquele homem muito mais velho e garantir que a sua família, conseguiria começar uma vida nova na Europa? Ou desaparecer e procurar ela uma nova vida longe de todos?
Ficou ali, deitada no chão, como uma boneca abandonada.
Acordou com os primeiros raios de sol a bafejarem o seu rosto de tês morena e custou-lhe despertar para a realidade em que se encontrava.
Nhaíla levantou-se decidida, ajeitou a túnica verde e bordada a dourado, sacudiu-lhe o pó e amarrou o cabelo com o elástico que trazia no pulso, tinha tomado uma decisão, já tinha quinze anos e não ia ser moeda de troca.
De regresso à sua tenda, encontrou todos em sono profundo, deviam ter andado à sua procura - pensou e sorrateiramente, retirou umas moedas da bolsa que o pai trazia sempre presa à cintura, colocou algumas peças de roupa numa sacola de pano e retirou um lenço preto da mãe. Depois colocou o lenço em volta da cabeça, a sacola a tiracolo juntamente com um cantil de água, uns bolos secos e um pão. Agarrou na viola, deitou um último olhar triste aos irmãos e aos pais e saiu da tenda.
Enquanto caminhava com uns chinelos a calcar a terra batida, limpou uma lágrima teimosa do rosto e seguiu caminho.
Era certo que olhando para ela todos pensariam que se tratava de uma mulher mais velha, pois estava com o lenço da mãe e a túnica, mas não deixava de ser uma mulher, logo já tinha percebido que seria uma presa fácil, mas iria conseguir, pensou.
A solução pareceu-lhe viável quando vislumbrou na berma da estrada de asfalto, por onde seguia, um grupo de homens e mulheres também eles com a casa às costas, não tinha dúvidas também estavam em fuga. Assim juntou-se ao grupo, que ficou a saber iriam tentar arranjar passagem para a ilha Grega de Cós, com um passador.
Quando o grupo entrou na pequena aldeia, percebeu logo pela longa fila que terminava numa praça, que todos iam em busca da mesma pessoa. Esperou pacientemente pela sua vez, não sabia bem o que havia de dizer, mas sabia que certamente teria de pagar a sua passagem.
Retirou da sacola umas moedas e começou a contar, não era muito dinheiro, tinha 50 libras Sírias, apertou com força as moedas na mão na esperança de conseguir.
Ao chegar a sua vez, a jovem deu de caras com um homem de meia-idade, barba curta e negra e ombros largos, tinha um olhar altivo - Tremeu, sentiu a voz faltar-lhe, aquele homem fê-la sentir-se muito pequenina.
Depois de repetir a frase que ouvira aos outros que seguiam à sua frente e sempre com o olhar preso ao chão, ouviu o homem dizer que dela não queria o dinheiro.
Nesse instante, o sangue gelou-lhe nas veias e olhou o seu interlocutor, ele passou-lhe a mão áspera pela face, esboçou um sorriso de escárnio e disse que lhe dava a passagem se ela passasse a noite com ele.
O tempo parou, reviveu todos os momentos que tinha passado para chegar até ali, viu passarem-lhe à frente dos olhos, aquele homem de barbas grandes a dizer ao pai que a queira levar e agora encontrava-se encurralada numa situação igual.
 Sem querer, as lágrimas corriam livremente pela sua face, desta vez viu Pedro, o seu amigo de quem tinha tantas saudades.
Voltou à dura realidade quando foi sacudida pelo homem impaciente, que queria uma resposta.
Limpou as lágrimas, olhou o homem nos olhos e limitou-se a fazer um aceno afirmativo com a cabeça.
O dia ainda não tinha amanhecido e já Nhaíla caminhava, hirta, os passos certos marcavam o compasso de um coração descompassado, seguia automaticamente, como um robôt. Os seus olhos estavam secos, sem brilho, já não tinham mais lágrimas, o sangue ainda lhe escorria pelas pernas e a sua túnica estava manchada.
Seguia em direcção a um ribeiro que existia à saída da aldeia, despiu a túnica e entrou na água gelada - Talvez assim se purificasse.
Eram sete da manhã e quando chegou junto ao ponto de encontro que o seu carrasco lhe tinha indicado, já se encontravam lá muitos outros. Reparou que existiam outras jovens e não deixou de se interrogar, porquê ela? Porque foi a escolhida? Seria castigo? Decerto merecia tal castigo, por ter deixado a sua família ao abandono.
Ao chegar perto do barco, repetiu o nome que o passador lhe tinha indicado e deram-lhe um cobertor e um saco com pão e água.

Encontrou um canto e acomodou-se. Encostou-se à viola e enroscou-se no cobertor, começava uma viagem sem retorno, mas tinha escolhido viver em vez de ir morrendo aos pouco, nas mãos de alguém que a iria transformar num mero objecto.

Carla Santos Ramada
In "Fúria de Viver" da Sui Generis

terça-feira, 29 de agosto de 2017

A Fada Menina




A Fada Bailarina
A Fada do Baloiço
Ou a Fada Menina.
Assim a podem chamar,
Era ainda de tenra idade
Quando para as nuvens foi morar.
E lá do alto do seu baloiço,
Preso às nuvens por cordões de flores,
Vigia o mundo ao qual já pertenceu
E de crianças como ela quer evitar as dores.
Mas como ela existem muitas mais,
Espalhadas pelo céu.
Quando cai a noite
Inicia a sua nobre missão,
E voa de casa em casa
Soprar magia em cada coração.
A Fada Tita é muito engraçada
Arranja sempre maneira de espalhar alegria,
Anda sempre atarefada,
É uma correria de noite e de dia.
E quando vê uma criança
No escuro do quarto a chorar,
Fica logo muito aflita
E voa de mansinho até lá para a ajudar.
E na quietude do quarto, lança pós de magia pelo ar
Não são pózinhos de perlimpimpim
Mas a calma regressa aquele quarto
E a menina volta a adormecer e a sonhar.
De regresso ao seu baloiço
A fada menina já pode descansar,
Mas prefere observar o mundo lá em baixo
Como é bela a sua missão
Ajudar meninas como ela a sorrir, a brincar
E a ter amor no coração.




Carla Santos Ramada
In " Histórias para dormir e sonhar" Edições Horús

sexta-feira, 14 de julho de 2017

O testemunho real de uma semana devastadora

Não podia deixar de colocar aqui o testemunho de alguém que viveu de perto, perto demais até, o inferno do fogo e a dor da perda e de como se consegue Renascer.
A minha irmã e toda a minha família próxima encontravam-se lá, no epicentro de todo aquele cenário dantesco que eu via pela televisão, foi complicado gerir a impotência de quem está longe e quer saber notícias, mas estar lá..... Deixo o meu profundo obrigado aos bombeiros, mas para mim os meus heróis foram eles, a minha família! Sim Dora Rodrigues, Renasceremos com certeza, como diria a Marisa Liz "Porque juntos somos mais fortes", porém vão existir sempre marcas que nem o tempo conseguirá apagar. 



A semana que não se apaga da memória

 Um dia que começou tão bem, 17 de Junho de 2017 e parece-me que ainda nem sequer terminou, passados que estão 23 dias ….. Esse dia e o seguinte e o outro… parece que nunca vão terminar!
Começou não muito cedo, no dia anterior combinámos ir todos á praia fluvial de Cardigos (uma das nossa preferidas) para descansarmos, pois tinha sido a primeira comunhão dos gémeos e seria bom para eles também brincarem, lá tem muito espaço. Saímos já por volta das dez da manhã, chegámos lá ainda a tempo de uns mergulhos antes de almoço. Levámos marmita e fizemos pic-nic á sombra de uma oliveira.
Foi muito divertido, os três “picatchus” divertiam-se na água e nós divertíamo-nos só de os ver felizes!
Estava a ser um dia fantástico em família, não imaginávamos o que estava para acontecer….
Por volta das 16:00 horas, já estávamos a lanchar quando tocou o telemóvel, era a minha sogra a dizer que havia um incêndio, que tinha começado nos Escalos Fundeiros, mas que já estava muito feio, muito grande.
Arrumámos logo as coisas e fomos embora! Sempre pensando que seria como tantas outras vezes, o incêndio acabaria por ser apagado, algumas horas depois…
Pelo caminho, ainda choveu e trovejou e nós pensámos que também seria de esperar que acabasse por chover lá na nossa terra, pois não fica assim tão longe …. Mas não aconteceu!
Á medida que nos aproximávamos vimos que o incêndio já era de grandes proporções! Chegámos pouco antes das 17:00, já havia muitos carros de bombeiros a passar e GNR na estrada, fomos até á Tojeira, onde estavam os meus sogros e já era “assustador”, do lado de lá da estrada que passa á frente da casa dos meus sogros tudo ardia….. Para o lado de Gois e Pampilhosa parece que havia outro incêndio e os aviões estariam a descarregar lá, por isso não havia aviões ali. Liguei pela primeira vez á minha mãe, para dizer que o fogo estava feio e como estavam as coisas lá para o lado da Derreada, disse-me que para lá ainda estava longe, perguntei pelo meu pai, adivinhando já a resposta: “Está a trabalhar na fábrica”
Tinha ido de motorizada, como sempre e estava sozinho na fábrica nas Sarzedas, fiquei preocupada claro, mas como o fogo não andava para lá….
Saímos dali e fomos até mais acima pela estrada nacional, quando um GNR, que passou e nos conheceu, nos disse: “ já está em Pedrógão!” Foi quando na minha cabeça a campainha de alerta soou! Nesta altura já os meus meninos estavam muito assustados.
 Fomos embora para Pedrógão.
Quando chegámos ao cruzamento do Vale da Manta, mesmo á entrada da vila já me parecia muito mau, com GNR a cortar a estrada, estava nas Fontainhas, ou seja mesmo ali, virámos e fomos pelo campo de futebol até ao cruzamento e aqui o cenário já se tornou aterrador! Aqui senti medo, mesmo! Os bombeiros estavam na estrada, moradores a gritarem que as casas iam arder que tiveram que fugir, ambulâncias…. Enfim! As chamas já tinham “galgado” a estrada nacional, e estavam já do lado do campo de futebol e Vale da Manta, às portas da vila. Como os pequenos estavam a ficar muito assustados e aflitos, fomos até casa de uma amiga e como estava lá a filha Laura, ficámos lá um bocadinho para ver se os miúdos se acalmavam.
De repente, ouvimos dizer que já tinha passado para os Troviscais, Mosteiro….Estava a avançar com uma velocidade fora do normal…. Já passava das 19:00 horas quando pensámos ir então para casa com os miúdos pois eles não paravam de pedir que queriam ir para casa, diziam “mãe tenho medo, quero ir para nossa casa!” Perante isto fomos embora.
Parámos nos Bombeiros e disse ao meu marido para perguntar se precisariam de alguma coisa, nós ficámos no carro os quatro há espera, quando começou um vento forte, assustador! Os carros estacionados abanavam todos, o nosso carro “cheio” e sentíamos os balanços ….. Horrível, parecia um “tornado”. Fomos mesmo para nossa casa, comemos qualquer coisa.
 Entretanto tinha falado com a minha mãe e ela disse que o meu pai ainda não tinha vindo e que o fogo estava já no concelho de Castanheira de Pêra, Sarzedas incluído (onde estava o meu pai) e que também já andava para o lado das Regadas (muito próximo da aldeia da minha mãe), decidimos então ir até lá ver como estavam as coisas. Chegados lá a minha mãe já estava a ficar aflita e para dizer a verdade eu também, pois já eram perto das 22:00 horas e o meu pai, sozinho na fábrica! Fomos até ao cruzamento das Regadas e vimos e ouvimos aquele “inferno”, toda aquela encosta ardia….Ouviam-se rebentamentos…. Aterrador!, voltámos para casa dos meus pais.
Os meus tios e primos de Lisboa também estavam ao pé da minha mãe, pois tinham vindo para a comunhão dos meus meninos e ficaram de fim-de-semana, nesta altura a minha mãe ligou novamente ao meu pai, que lhe disse que tinha conseguido falar com o patrão, que já vinha a caminho mas não conseguia passar para lá, disse também que de lá via já casas a arder na aldeia. Eu disse á minha mãe que lhe dissesse que não viesse, porque de mota nunca iria conseguir….. Regressámos então para Pedrógão para nossa casa, sossegámos os miúdos e lá se deitaram. Eles adormeceram, mas eu estava longe de pensar na terrível noite que iria passar sentada na cadeira da varanda da minha casa…….Até de manhã!
Quando viemos da Derreada, ficámos a saber que já existiam 4 bombeiros feridos, que seriam da Castanheira de Pêra, e que havia já casas ardidas, e que duas pessoas da Derreada estariam gravemente feridas, o fogo estava portanto incontrolável. Tomei consciência que a situação era grave.
Uma vez, que os meninos estavam já a dormir, o meu marido foi ver como estavam as coisas para o lado da Tojeira e não só e eu fiquei sozinha sentada naquela cadeira verde na varanda da minha casa a rezar, a sentir aquele cheiro que se entranhava no nariz, a ver todo aquele fumo que estava no ar juntamente com muitas “velhas” que iam caindo…. E a ouvir o som dos carros de bombeiros a apitar, ambulâncias, GNR e tudo o mais…..
Entretanto falei com a minha irmã que está em Lisboa e para além de a deixar também preocupada foi ela que me disse algumas coisas do que estava a ver na televisão porque nós estávamos sem comunicações, no facebook e nas noticias, o numero de mortos aumentava e aumentava e aumentava…..Nem dava para acreditar, numa coisa assim, como era possível, tantos mortos, já falavam em 24! Tinha visto muitos incêndios, mas assim com vítimas mortais, e tantas nunca! E ainda não se sabia tudo…
 Ligo novamente á minha mãe, uma de muitas, muitas vezes que liguei naquela noite, ainda conseguíamos falar e ela nessa altura disse-me o que me deixou completamente “assustada”, tinha perdido a comunicação com o meu pai, ele estava portanto incontactável, a ultima vez que falaram foi quando eu tinha lá ido acima, seriam por volta das 22:00 horas…..  Ela também estava já muito aflita…. Não sabia o que fazer, mas estava com os meus tios e primos…menos mal, lembro-me de pensar na altura!
Falei também mais que uma vez com a minha irmã que também estava preocupada e longe….. sobretudo longe! Se ao menos ela pudesse estar ali…ia perceber como me sentia de coração tão apertado!!
Quando o meu marido chegou passado pouco tempo, disse-me o que eu nem queria acreditar, havia já muitas mortes, na tal estrada N236, tinha dado na TV, mas nós não tínhamos rede, não tínhamos TV, ainda assim, o que tive sempre acesso foi o facebook, onde me ia “actualizando”! Depois disse que um dos mortos era a filha da Gina!! Tinha 3 anitos! Aí tremi, senti um arrepio, o coração quase que me saía do peito e pensava: “Como é que pode ser? Meu Deus, como…?”
A partir daqui e até de manhã, o meu marido ia e vinha, vezes sem conta ..… A tentar passar para as Sarzedas, porque eu lhe pedia: “Por favor vai ver se já consegues passar” e entretanto ligava a todos os que me lembrava que pudessem saber do meu pai e nada, não havia rede…já de madrugada, o patrão do meu pai, passou na Derreada e disse á minha mãe que ia tentar de alguma maneira chegar á fábrica…..
Meu Deus e eu ali continuava sentada naquela cadeira verde, chorava, chorei tanto! Pedia, rezava, implorava a Deus que protegesse o meu pai.
Quando já de manhã, eram 07:30h o meu marido se preparava para ir novamente ver se já passava, a minha mãe ligou e disse-me “ Dora o teu pai chegou agora, o patrão veio trazê-lo” e eu perguntei: “Ele está bem?” “Sim disse ela, está”, liguei á minha irmã que lá longe também se devia estar a sentir angustiada.
Foi um alivio, acho que chorei novamente, mas desta vez de alegria e fui tomar banho, fui á Vila mais propriamente á Igreja, senti que tinha que ir agradecer o Milagre que ELE fez por mim naquela noite! Porque, sim eu acredito foi um Milagre!
Nesse Domingo de manhã as noticias tornaram-se ainda mais aterradoras, falava-se em 63 mortos, estava incrédula….. Nesse mesmo dia começou uma onda de solidariedade nunca antes vista, em Portugal! Chegavam camiões, e camiões cheios de coisas, comida, roupa…..Muita coisa mesmo! Nos Bombeiros já eram muitos os voluntários a ajudar.
Os miúdos acordaram, o cheiro a queimado continuava, o fumo…tudo, o incêndio continuava, já tinha passado para Figueiró e tudo….. fomos almoçar aos meus sogros, afinal era domingo, mas a missa seria só ás 15:00h e nem sabia se iria haver….

Depois de almoço, viemos para casa, os miúdos como tinham dormido de noite, ficaram a ver televisão e eu e o meu marido deitamo-nos para tentar descansar um pouco mas …. Foi por pouco tempo, logo de seguida, deveriam ser umas 16:00 horas, toca o meu telemóvel, era a minha mãe: ”Dora, ai… o fogo está a vir para cá, já está nas Regadas e também do lado da Ervideira!” Sentei-me logo na cama e disse ao meu marido: “ Fernando, anda temos que ir, o fogo esta a chegar á Derreada”, lá fomos e pensámos que não podíamos levar para lá os pequenos, não sabíamos como ia ser, então passámos em casa da Céu no Vale da Manta e deixamo-los lá.
Chegámos á Derreada, estavam os meus pais mais uns vizinhos na estrada e realmente a aldeia estava a ficar cercada pelo fogo, de todos os lados.
Foi quando veio o Presidente da Junta de freguesia, que já tinha lá estado e disse que fossemos regar as casas, regar tudo, até pudermos porque não havia bombeiros para ir para lá e foi isso que fomos fazer. O meu primeiro pensamento foi: “temos de evacuar o avô!” Liguei para o meu colega, que por acaso é também o Presidente da Junta e disse-lhe isso mesmo, ao que ele me disse que já iam ambulâncias a caminho para o efeito. Enquanto uns ligavam as mangueiras eu e a minha mãe fomos ter com o meu avô, que estava sentado debaixo da varanda, como era hábito dele. Por esta altura havia já muito, muito fumo, parecia que era já noite…. E a minha mãe disse que ele tinha que comer um iogurte, ele comeu, e eu disse-lhe: “avô temos que ir embora, o fogo está perto”, no fim de comer o iogurte, ajudei-o a levantar e trouxe-o até á estrada, á porta de casa.
Nunca mais vou esquecer estes minutos……. (enquanto o ajudava a caminhar sem a bengala até á ambulância que tinha já chegado) ele dizia-me “Dora, para onde é que vamos?” Eu disse-lhe: “avô vai para o centro de saúde de Pedrogão, porque nós ainda podemos correr e saltar e o avô não”, tentava “desdramatizar” o que na verdade já era dramático.
Ele já quase a chegar á ambulância disse-me: “Agora daqui é já para o cemitério!”, eu respondi-lhe “Mau, não é nada, ainda há-de voltar para a sua casa!”……. Não voltou!! Disse-me ainda “E a minha casa?“, a sua casa há-de cá estar á sua espera, não se preocupe”, disse-lhe.
Já dentro da ambulância, onde ia sentado, perguntou-me: “ E já morreu muita gente?” e eu disse-lhe: “Já avô, já morreu muita gente. Agora vá descansado que nós vamos lá ter consigo, está bem?”. E ele lá foi para Pedrógão.
Depois disto, tudo se complicou, fui buscar umas camisolas interiores do meu pai que estavam lavadas e dei uma ao meu marido, fiquei com outra para mim, molhei-a torci e atei á volta da cara a tapar a boca, porque já sentia a garganta a “picar” de tanto fumo que havia! E numa certa altura, o meu marido fez a pergunta: Como é, ficamos ou vamos embora?” Só precisei de pensar uns segundos e disse “Ficamos!”
O fogo fazia um barulho ensurdecedor e ainda disse ao meu marido: “ se ele chegar aqui com esta força só temos tempo de fugir para dentro da casa dos meus pais por ser a mais segura.” Mas no fundo houve a factor “sorte” talvez, a nosso favor, o vento não era forte naquela altura!
Regámos tudo, a casa do meu avô, os meus pais a casa deles e a minha madrinha e o meu primo a deles claro, quando passado um tempo não sei agora precisar quanto, apareceram três carrinhas da Força de Intervenção da GNR, pararam na estrada, subiram ao terraço onde estávamos a regar as coisas e com uma agressividade estonteante, ordenaram que saíssemos imediatamente dali! Não ficava ninguém! Naquele momento digo, senti-me na pele de um qualquer arruaceiro!
Depois de tentar acalmar os ânimos que entretanto estavam já exaltados, lá consentimos em sair. Fomos no nosso carro e os meus pais no deles.
Saímos da nossa aldeia, sem meios de combate no local, sem ninguém…. E enquanto percorria a estrada a caminho de Pedrógão (a ordem era ir para a Santa Casa da Misericórdia), sentia um nó na garganta e um aperto enorme no coração! Lembro-me de pensar: “Meu Deus, meu Deus, a ti deixo entregue as nossas casas!” E foi Deus o único bombeiro, penso eu!
Chegados á Venda da Gaita parámos, o meu primo também, a minha madrinha tinha ido na ambulância, estava muito agitada, perturbada! Uma amiga minha, que também está na Junta, disse-nos para irmos jantar, comer qualquer coisa, no “tasco” da mãe que fica á beira da estrada, na Tojeira, havia lá refeições para quem, como nós precisava. Já deveriam passar das 20:00h. Aceitámos, apesar de ninguém ter fome, fomos buscar a comida e comemos em casa da minha sogra que era a caminho.
Dali fomos logo para Pedrógão, ter com o meu avô. Ainda passámos no Centro de saúde, a perguntar, onde nos disseram, que tinha ido para o Lar. Fomos lá, onde nos informaram, que ele estava lá dentro e nos indicaram o caminho, mas estava um pouco agitado e ansioso, a perguntar pelas filhas e neta, então uma psicóloga da Cruz Vermelha já tinha falado com ele.
Quando chegámos ao pé dele, disse-lhe: “Então avô, já estamos aqui, estamos todos bem, eu não lhe disse que vínhamos ter consigo? Deu-lhe um beijinho na cabeça, com uma festinha”. Ele olhou para nós todos e chorou!
Ali, estava já muita gente, que tinham sido evacuadas de outras aldeias, havia pessoas lá dentro sentadas, em cadeiras, (as mais idosas), até cãezinhos eu vi lá presos com um cordelito, a uma pata da cadeira.
 Cá fora o cenário era também caótico, com pessoas deitadas em cima dos muros, ou no chão….
Fomos entretanto, a casa da Céu ver os nossos meninos, estavam bem! Estavam entretidos! Só ficaram mais cabisbaixos, quando sem querer até, falámos na morte da filha da Gina, a Bianca de 3 anos. Optámos por deixa-los lá a dormir. Estava preocupada com as casas na Derreada, se estaria tudo bem e queria lá voltar.
Depois de irmos novamente á Santa Casa, falar com os meus pais e ver se o avô estaria bem, falei com a minha irmã que me disse que tinha conseguido saber através do facebook que já não havia perigo na Derreada, disse ao meu marido, que queria ir lá ver como estavam as coisas e fomos!
Devo dizer, que tal como saímos, sem ninguém, também fomos até á aldeia, sem que alguém nos impedisse. Á medida que nos aproximávamos, a ansiedade aumentava e pensava, como estariam as coisas? Será que tinha ardido alguma casa? Mas não, Graças a Deus!
Entramos, passámos no meio da aldeia e saímos, vimos que nenhuma casa tinha ardido, apesar de ainda haver alguns focos a arder.
 Fiquei depois a saber, que tinham ficado lá algumas pessoas “escondidas” dentro das casas aquando da evacuação compulsiva! E também soubemos que na serração também tinham ficado lá com um bombeiro e um carro que não tinham deixado sair de lá. Foi no caso concreto da nossa casa, a nossa “sorte”.
De volta ao Lar e já mais descansada, fui dizer aos meus pais, madrinha e primo, que tínhamos lá ido (eles não sabiam) e que descansassem, estava tudo bem, nenhuma casa ardeu!
Depois disto, disse aos meus pais e eles foram connosco para minha casa descansar um pouco. Pouco, porque eram 02:00 horas da madrugada, quiseram ir para casa, compreendi-os e lá foram. Nós ficámos! Foi nesta altura que me deitei para conseguir dormir alguma coisa, pouca, porque custou a fechar os olhos e logo o despertador tocou, para me dizer que tinha que ir trabalhar. O meu marido ficou em casa, levantei-me “ atabalhoadamente, ainda zonza!! Mas tinha que ser! E o que tem que ser tem muita força! Pensei….
No caminho para Figueiró dos Vinhos, pelo IC8, fiquei em choque……á medida que ia avançando, não via nada á minha volta, ao longo de 17 Km, que não fosse preto! Tudo preto! Um cheiro intenso a queimado, fumo, ainda muito fumo! E sem dar conta as lágrimas já escorriam pela minha face. Pensava, meu Deus, não há vida aqui, só morte! Nem plantas, nem animais, tudo morreu….Nem fauna nem flora! Foi um caminho muito difícil de percorrer naquela manhã de segunda – feira, dia 19 de Junho de 2017!
De repente lembrei-me “ a minha mãe faz anos hoje!”, mais logo tenho que lhe ligar, devem estar ainda a descansar!” Pensava eu que o pior tinha passado! Mas o pior ainda estaria para vir!
Chegada ao meu local de trabalho, nada podia fazer, pois não havia electricidade, comunicações, nada! Mas tínhamos que ficar eu e outro colega de Pedrógão. Apenas o meu telemóvel conseguia funcionar.
Ainda tentei ligar á minha mãe, mas já não me lembro se consegui falar com ela ou não, sei que estava para ir almoçar, quando recebo uma chamada da Lígia da Derreada e fiquei logo assustada, “O que queria ela?” e tinha razão. Disse-me que o Pedro vinha para casa com a minha madrinha e o meu avô e tiveram um acidente na reta dos Escalos Fundeiros, mas ela não me sabia dizer mais nada, estava ao pé da minha mãe, que também não sabia nada.
Tremi, fiquei imóvel, a tentar raciocinar o melhor que podia e conseguia.
 Liguei ao Pedro e nada, não tinha rede. Falei entretanto com a minha irmã, que também ficou aflita, liguei ao meu marido e pedi-lhe que tentasse saber deles, como estariam. Enquanto não sabia de nada lembro-me de pensar e rezar: “ O que estará mais para acontecer? E pedi, meu Deus, se tiveres que levar alguém, que não seja o meu primo nem a minha madrinha!”
Passada uma hora talvez, de várias tentativas de telefonemas, a minha irmã disse-me que já sabia que o Pedro estava bem e que o meu avô e madrinha tinham ido para Coimbra. Pouco depois ligou o meu marido, que me disse que no Centro de Saúde, lhe disseram que eles tinham lá passado, mas que iam os dois pelo pé deles, que tinham ido por precaução fazer exames, mas que mais logo já podia ir busca-los, aqui respirei fundo, de alivio., afinal estava tudo bem! Liguei á minha mãe que estava ao pé do Pedro, que estava bastante transtornado, mas bem. Disse, que mais logo iam lá ao hospital para busca-los! Ainda passaram pela fábrica do meu pai.
À tarde lá foram. Eu descansei um pouco, no fim do dia tive de ir á Sertã tratar de umas coisas de trabalho e como a minha mãe fazia anos pensei em levar uns frangos assados e comíamos todos lá em casa quando viessem de Coimbra. Ao menos para lembrar o seu aniversário!
Já na Sertã, o meu telemóvel não parava de tocar, a perguntarem pelo avô e madrinha. A minha mãe tinha-me dito que estavam a fazer exames, mas estavam bem, o meu avô também estava bem.
A Daniela também vinha de Abrantes, então era perfeito, jantávamos todos lá em casa, quando saí comprei os frangos e também um bolo de bolacha. “Ao menos um bolito” pensei.
Já em casa com a Daniela e marido, passava das 20:00 horas, quando a minha mãe ligou, a madrinha tinha alta, mas o meu avô ainda ficava porque estava a fazer “uma ponta de febre” e ia fazer mais alguns exames.
Ok, pensei “Então venham andando que eu vou pondo a mesa, já cá está a Daniela”, disse.
Passados talvez uns 15 minutos ou nem tanto, liga-me o Pedro e eu não estava a perceber nada do que ele dizia, perguntei, uma vez e outra e ainda outra: “O quê? Não estou a perceber!” E então ouvi, percebi bem o que eu não queria e não esperava ouvir: “ligaram agora do hospital, o avô faleceu”
Deixei-me cair no sofá que estava atrás de mim e fiquei ali sentada, com o telefone colado ao ouvido e as lágrimas a correrem uma atrás da outra, copiosamente…. Acho que todos acabaram por entender o que se passava.
Finalmente desliguei o telefone e consegui dizer: “o meu avô faleceu”.
Ficou um silêncio tão grande na minha sala, apenas olhávamos uns para os outros, chorávamos, e no olhar de cada um podia ver a pergunta: “mas como? Como?”, Também agora os meus meninos choravam, cabisbaixos, o meu marido ligou á minha sogra e foi lá levá-los.
Seguiram-se uns telefonemas difíceis, para o meu tio, irmã, primos, para o Sr. da funerária…enfim! Quando chegaram, lá comemos o frango, porque o bolo, esse esteve oito dias no meu frigorífico, sem que conseguisse abri-lo.
 Acabou no caixote do lixo!
 Foram todos embora, porque só no dia seguinte é que poderíamos ir levantar o corpo e como ninguém quis (porque não eram capazes) ficou combinado que de manhã cedinho iria eu com o meu marido e o Sr. Carlos da funerária.
Já na minha cama, a noite foi difícil, dura …..
De manha lá fomos, devo dizer que foi das coisas mais difíceis que já fiz na minha vida.
Chegados á casa mortuária do hospital, não deixaram levantar o corpo, tinha que ser ouvida no DIAP, disse o Sr. Carlos. Como? Sim, como tinha dado entrada como consequência de um acidente, teria de ser autopsiado e o que deveria eu dizer lá? Que não queríamos que ele fosse autopsiado, claro, senão quando nos iriam devolver o corpo, com tantos corpos que lá estavam vitimas do incêndio?
Lá fomos, a espera foi terrível…… uma hora talvez, eu estava á beira de um ataque de nervos, mas não podia mostrar! O que mais fiz durante esse tempo? Rezava, no meu íntimo rezava e pedia ao Espirito Santo que me iluminasse com a sua Luz e eu soubesse dizer as palavras certas.
E assim foi, lá fui ouvida, durante 45 longos minutos! Depois esperei mais 15 minutos e lá veio a resposta: “ A procuradora dispensou a autópsia”.
 Quando sai de lá, as minha pernas ainda tremiam, toda eu tremia e pensei “Foi a ultima coisa que fiz por ti avô”.
Passámos para a etapa seguinte, fomos para o Hospital para levantar o corpo, finalmente. Já lá estavam os meus pais, o meu tio e primos, depois tive que ir lá dentro reconhecer o corpo do meu avô….Apenas olhei para ele ali deitado, o senhor perguntou-me: É este senhor? Ao que eu respondi que sim, era. Dei-lhe um beijo na testa fria, gelada e sai em lágrimas!
O que se seguiu foi um velório triste, muito triste, mais triste que o normal….por causa do incêndio, que ainda andava a lavrar perto da Derreada.
O Sr. Carlos ainda fez “força” para que fosse em Pedrógão, mas nós não quisemos, já era suficientemente mau que tivesse falecido fora da sua casa, ainda teria de ser velado fora da sua terra? Não, nós não quisemos! Apesar dos constrangimentos e de estradas cortadas, a GNR a pedir que nos juntássemos no largo da aldeia para o caso de ser preciso evacuar novamente as pessoas, mas nós não aceitámos sair dali e lá ficámos.
Agora, passados que estão 25 dias do início de toda esta tragédia, ainda não desapareceram da minha memória todas estas imagens e vai demorar!
E todos os dias, passo naquele IC8 e vejo aquele cenário dantesco….. Aquela escuridão!
Mesmo que queira esquecer não consigo!
Mas as más notícias não tinham terminado, no dia do funeral do meu avô, já todos tinham ido embora, deitei-me na minha cama para tentar dormir um pouco…. Toca o telemóvel, era a professora de música, a Ana, que me disse: “Dora tenho uma má notícia para te dar, faleceu o professor de trombone do Edgar, o professor Jaime, num acidente de carro, foi agora mesmo!” Sentei-me num ápice na cama, acho que fiquei uns segundos em silêncio a tentar “absorver” a triste noticia e pensei: “Mas quando é que isto acaba?”.
 Nesse dia não tive coragem de contar ao Edgar, disse ao meu marido e concordámos em esperar mais uns dias …..É muita coisa para uma criança de 11 anos!
No entanto, no dia seguinte já todos me diziam que tinha morrido o professor dele….Então achámos melhor contar-lhe. Primeiro disse-lhe que tinha tido um acidente muito grave e estava muito mal, no dia seguinte é que lhe disse que ele tinha falecido.
O que é que nós fazemos quando o nosso filho de 11 anos recebe uma notícia destas e se abraça a ti a chorar? E quando já no outro dia, estás a trabalhar, liga a tua sogra e te diz que não sabe o que fazer porque o Edgar está deitado no sofá, só chora, não quer brincar, porque morreu o professor dele? Senti-me tão impotente! Nós conseguimos aguentar a dor, o sofrimento…..Mas e as crianças? Sim eles também aprendem a crescer assim, mas doí tanto vê-los sofrer!
E foi esta a pior semana da minha vida! Sem dúvida.
Todos os dias oiço histórias terríveis, de pessoas que conheço bem, clientes da Caixa que passaram por situações absolutamente dramáticas, de como escaparam fechados na dispensa, por baixo das escadas, a rezar ou deitado com a mulher já desmaiada debaixo de uma manilha de cimento. Pessoas que perderam os seus entes mais queridos, um que perdeu a filha com apenas três anos, a esposa em Coimbra queimada, ou a Susana que me diz, que esteve sempre a falar com a mãe e lhe pediu para vir para o pé dela e acabou por os perder a todos, a mãe, o irmão, a cunhada e o padrasto! Todas pessoas que eu conhecia! São relatos na primeira pessoa, não são lidos num qualquer jornal, revista ou facebook, são contados pelos próprios protagonistas desta infeliz e triste, muito triste história!
Depois dou por mim a pensar: “ Meu Deus, a minha dor é tão pequenina, quando comparada com estas pessoas!” Mas não sei porquê não “apaga” o que continuo a sentir…. Não tenho vontade de rir, de brincar, de nada…. Sinto uma tristeza tão grande!. Não só porque perdi, assim de repente, sem esperar, o meu querido avô, mas também porque todos os dias, vejo a escuridão á minha volta e oiço as histórias de quem ficou, de quem perdeu tudo, só ficou com a roupa que tinha, como a Anabela com 2 filhos, o marido e a mãe.
Já ofereci ajuda a todos eles, mas isso também não me faz sentir melhor…. Não sei porquê! Só ainda não consegui ir ver a Gina…..Acho que iria ser uma péssima visita! Talvez um dia consiga falar com ela e dizer-lhe que terá que arranjar forças para continuar!
Escrever faz-me sentir melhor, por isso decidi, que ia escrever a minha experiência, tudo o que vivi e que ainda está bem presente na minha memória.
 Só porque sim, só para mim, talvez…. Não sei.
Entretanto vou de férias e talvez quando voltar, me sinta melhor! Com mais força de acreditar que NÓS VAMOS RENASCER! Pelo menos tenho essa esperança!

Por Dora Santos Rodrigues
Pedrógão Grande, 12 de Julho de 2017

Carla Santos Ramada


quinta-feira, 8 de junho de 2017

Pudesse Eu



Pudesse eu …
Voltar a sentir-me apertada em teus braços.
Voltar a beijar-te ainda com mais sofreguidão.
Pudesse eu…
Voltar aos tempos de loucura.
Voltar a sentir o palpitar do teu coração.
Pudesse eu…
Voltar a sentir-me trespassada pelo teu olhar acutilante.
Ter o sol dos teus olhos a aquecer os meus dias.
Pudesse eu…
Deixar-te ir, só para voltares para mim, a morrer de saudades.
Voltar a sentir o teu cheiro em mim, todas as manhãs ao acordar.
Pudesse eu…
Aninhar-me em teu corpo aveludado.
Transformar o presente em passado.
Pudesse eu…
Não!
Não posso!
Pudesse eu…
E voltaria a (re)nascer
A ter alegria
A ter vontade de viver.
Não!
Não posso!
Pudesse eu…
E amar-te-ia ainda com mais intensidade
Feita louca, insana.
Uma louca a rebentar de felicidade.
Não!
Não Posso!
Pudesse eu…

  

Carla Santos Ramada
In "Poesia a cores" GMH
Maio 2017

E se um dia partires…



E se um dia partires,
Deixa ficar a tua poesia em mim.
Deixa que eu conheça os teus segredos, através das tuas palavras.
Deixa!
Quero sentir essa explosão de cores que trazes sempre,
Em cada sorriso
Em cada olhar
Em cada palavra.
E se um dia partires,
Deixa!
Que pincele com as cores do arco-íris
Toda essa alegria
Todo esse amor
Toda essa magia
Todo esse teu jeito único de ser
E se um dia partires,
Deixa!
Porque…
Quero beber-te até ao fim
Quero saborear cada gole
E sentir-te a percorrer as minhas veias 
E se um dia partires,
Antes de morrer
Deixa ficar o teu travo e o teu cheiro
A viver em mim
Só assim será suportável o meu viver.
E se um dia partires,
Deixa!
Que eu me vista de todas as cores - E chore!
Porque…
As lágrimas que por ti chorarei
Tornarão fecundo o meu jardim
E dele brotarão plantas feitas de amor
Porque…
Serei sempre tua.
Mesmo num dia sem sol,
Ou numa noite sem lua.
E depois de partires,
Nesse dia, a minha poesia perderá a cor,
Porque tu deixas-te de a alimentar, com o teu amor.


Carla Santos Ramada
In "Poesia a Cores" GMH
Maio 2017

quinta-feira, 18 de maio de 2017

A prenda para a filha

Já todas as mães sabem, que os dias nunca mais acabam e que os nossos filhos estão sempre prontos a surpreender-nos, bem e quanto a isso, já não é novidade.
Mas depois existem aqueles momentos em que ficamos sem palavras, em que parece que o coração vai rebentar de alegria e de repente esqueces o  dia chato no trabalho, esqueces o cansaço no teu corpo.
É, ser mãe tem destas coisas… maravilhosas.
Hoje a minha filha recebeu de prenda de anos dois fios iguais, cada um com um coração e num tem escrito “Best” e no outro “Friends” e adorou claro, não fosse ela uma menina vaidosa.
Olhou para mim e perguntou o que queria dizer “Best” pois a outra palavra já sabia.
Após ouvir a minha resposta, disse muito pronta:
- Então posso ficar com um e dar o outro à minha melhor amiga?
Eu disse que sim, a ideia é essa.
Ela saiu aos pulinhos a dizer que ia levar para a escola para dar à amiguinha.
Passado um pouco, voltou atrás e veio ter comigo com os fios na mão.
- Mãe!! Olha, estive a pensar e decidi que afinal quero dar-te este fio a ti, porque a minha melhor, melhor amiga és tu! Gostas do fio? Posso colocar-te ao pescoço?
Acabámos num longo abraço.

Este momento valeu por tudo.

A mãe Carla

quarta-feira, 17 de maio de 2017

O Sonho

Quando eu era pequena,
Eu tinha um sonho,
E eu cresci…
E o sonho cresceu.
Mas agora não sei dele.
Será que fugiu?
Ou será que morreu?
Era um sonho grande, cor-de-rosa, onde eu colocava tudo.
Agora não o ouço.
Está calado?
Ou será que é mudo?
Já remexi todas as gavetas dos armários de minha casa,
Ou melhor, das casas por onde passei.
Mas foi em vão, porque do sonho nem sinal.
Não encontrei.
É que o sonho que eu procuro, já não é o que sonho que eu sonhei,
Cresceu, ganhou forma.
Mas continua a ser o sonho pelo qual lutarei!
E continuo à procura do sonho,
Agora diferente,
Mas continua a ser o meu sonho!
E remexo todas as gavetas.
Abro e fecho todas as portas
E o sonho não aparece,
Como por magia,
Talvez porque é sonho ….
Desaparece!!!
Mas não desisto e continuo a querer o sonho para mim.
Porque quando eu deixar de sonhar

É porque a vida chegou ao fim.

Carla Santos Ramada
In " Na minha cómoda" do GMH
Maio 2017

In "Florbela" Edições Hórus
Setembro 2018