quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Até quando a ilusão …



Foram tantos e tantos anos de momentos felizes….
Agora sobrava um calo na palma da mão, nada mais. Como se consegue andar uma imensidão de tempo iludida?? Como??
Nem aquele pobre calo devia existir, não queria nada, mas mesmo nada que lhe fizesse lembrar que um dia fora casada, partilhara a vida com alguém, fora feliz… mas como se consegue ser feliz se não se tem vida própria, não se faz o que realmente se gosta, não se diz o que se pensa??
Só percebi isso muito tarde…. tarde demais!!
Foram vinte anos de maus tratos psicológicos, todos os dias sem excepção ouvia “não vales mesmo nada” ou “se não fosse eu, onde é que tu andavas, para aí a vender o corpo na rua”.
Até me conseguiu roubar o sonho de ser mãe “ eu de ti não quero filhos, ainda saem à mãe e depois estou feito, já tenho de sustentar uma…”
Aquele malvado, roubou-me tudo, a minha juventude, a minha alegria, os meus sonhos.
Até da minha família me foi afastando.
Todos os fins-de-semana havia desculpas para não os ir ver, claro que sozinha estava fora de questão, logo eu também tinha de arranjar desculpas quando a minha irmã mais nova, a casula da família me interpelava – Mas se ele não pode vir porque não vens tu?
Porquê?? Seria tão mais fácil contar-lhe a verdade “ porque não posso, o meu marido não deixa” e já agora aproveitava para lhe dizer também que menti, quando disse que tinha tirado a carta de condução….
Mas a vergonha que sentia era maior que tudo, isso e o medo do que ele podia fazer se soubesse que eu tinha andado a falar da nossa vida com alguém “ o que se passa aqui dentro desta casa, morre aqui!! Entendeste ou precisas que te faça um desenho!!! “
Não, não precisava de nenhum desenho….
Durante todo aquele tempo ele foi deixando claro como as coisas funcionavam.
Quando chegava mais cedo do trabalho, me vinha dar um beijo à cozinha e perguntar pela janta, dizia “ depois de jantar vamos ao café ali do Zé Carlos beber qualquer coisa, podes escolher” era suficiente para eu saber o que me esperava depois da ida ao café….
Mandava-me para a cama, “ caminha Maria, vai-te lá aprontar que eu já lá vou ter”.
O que se seguia não era amor, não era prazer, era um suplício.
Aquela frase ainda faz eco na minha cabeça quando a deito na almofada “ Abre lá as pernas que aqui o teu zézinho está com saudades”.
Um dia descobri que estava grávida, foram dias verdadeiramente insuportáveis os que passei, era o meu sonho, um filho, era uma bênção.
As semanas iam passando e eu andava no dilema de conto ou não conto, se calhar se eu lhe disser ele vai cair em si e ficar feliz e tudo vai ser diferente.
Depois era eu que caía em mim, “ ele nunca vai mudar e não vai mudar de ideias, a solução é fugires e ter essa criança bem longe.”
Não podia fugir e ficar com uma criança nos braços e sem emprego, o que pensariam os vizinhos e a minha família?
Quinze dias depois ele descobre o teste que eu tinha feito e tinha escondido na minha gaveta da roupa.
Veio ter comigo à cozinha com aquilo na mão “ Isto é o que eu penso?? “
Respondi afirmativamente com a cabeça, não consegui falar.
Deu meia volta e resmungou “ isso amanhã resolve-se”.
Foi o pior dia da minha vida, fez-me entrar no carro de manhã cedo e levou-me a um consultório, não poderei dizer “ consultório médico “ se é que me entendem….
Mas aos trinta e nove anos e quando já nada importava para mim, vivia sem viver, descubro que estou novamente grávida.
Foi a luz ao fundo do túnel, a força que precisava, não ia perder outra vez a chance que o destino me estava a dar para ser feliz, para realizar o sonho de ser mãe.
Não ia cometer os mesmos erros, fiz o teste e deitei-o fora. Nesse mesmo dia ganhei coragem e liguei à mana casula, precisava de ajuda e tinha a pessoa certa para isso.
Nessa tarde ela veio buscar-me daquela prisão em que vivi vinte anos, sem ter cometido nenhum crime.
Não trouxe, não quis trazer absolutamente nada, nem a roupa….
Uma vida nova estava a começar dentro de mim, ainda ia a tempo de reparar o meu coração e recuperar a minha alma, para isso tinha de me desfazer de todas as memórias da minha vida passada, incluindo aquele maldito calo no dedo anelar.


Uma homenagem a todas as mulheres vítimas de violência.
Nunca é tarde para descobrir um novo caminho.


Carla Santos Ramada
Janeiro 2016

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A força da amizade



Como podes dizer que não se passa nada? Não são só os outros que tem problemas, ninguém é de ferro….
- Podes sair por favor e fechar a porta? A sério que está tudo bem, obrigado pela preocupação mas só me apetece ficar aqui sossegadinha.
 Acenei com a cabeça e saí do quarto, tinha a certeza de que se passava alguma coisa de muito grave com a minha amiga mas não estava a conseguir ajudá-la.
Quando uma de nós tinha um problema, um dilema qualquer de namoros ou de maridos e filhos, por mais insignificante que ele fosse, sabíamos que a Isabel tinha sempre uma solução, uma palavra certa na hora certa – Isto num grupo de oito amigas que se conhecem desde a infância, já se tornara mais do que normal, ela era a nossa “bengala” era a que estava sempre ali.
Agora todas nós nos sentíamos perdidas, incapazes de encontrar um rumo ou uma solução para o problema.
A rapariga alegre e bem-disposta deu lugar a uma mulher baça, cinzenta, sem brilho. Mas como não conseguimos perceber o que de errado se estaria a passar? Era a pergunta que todas nós fazíamos a nós mesmas.
Esta situação durava há meses, ela estava literalmente a definhar fechada em casa.
A vida tem tanto de belo como de cruel, como é que uma pessoa tão bonita por dentro e por fora, que sempre viveu em função dos outros, que não era injusta com ninguém, estivesse agora assim, viva mas sem viver.
- Madalena, temos de fazer alguma coisa para ajudar a Isa, vim agora de casa dela e não consegui que me dissesse nada, simplesmente mandou-me sair.
- Também já não sei mais que fazer, todas nós lá vamos todos os dias e o certo é que ela continua apática…
Não percebo o que se passa, indignou-se Helena.
- Já pensaram que se calhar é melhor tentarmos contactar os primos dela da Madeira?
- Achas que é mesmo motivo para isso? Perguntou a Sónia.
Ficámos todas em silêncio, estávamos no sítio preferido da Isa, a Boca do Inferno, era final de tarde, o sol estava a pôr-se no horizonte e ouvia-se o rugir das águas revoltas a bater contra as rochas.
As lágrimas apareceram sem avisar nos nossos rostos, faltava ali alguém….
- Posso dizer uma coisa?
- Sim, diz Catarina.
- Ela sempre carregou com os nossos problemas, as nossas aflições, às vezes tão parvas, agora ela precisa de nós e eu já prometi a mim mesma que vou trazê-la de volta à vida, podemos aqui e agora fazer essa promessa?
- Sim claro, respondemos todas em coro.
Fizemos um círculo, unimos as nossas mãos e a uma só voz gritámos num acto de revolta:
- Isabel, amiga, prometemos aqui no teu lugar favorito, que te vamos trazer de volta, custe o que custar.
Nessa noite decidimos que iríamos pegar nos nossos sacos cama e iríamos acampar em casa de Isabel.
A campainha tocou várias vezes até que ela abrisse a porta.
- Ah, são vocês! O que estão aqui a fazer?
Nem lhe demos ouvidos, entrámos para a sala e começámos a dispor os sacos cama pela sala.
- Queres pizza? Trouxemos comida e bebida, viemos acampar por aqui.
Rimos ainda que sem vontade, percebemos que não tomava banho há uns dias e também não havia vestígios de comida na cozinha.
- Não tenho fome, mas já que aqui estão fiquem à vontade, eu vou para o quarto…
- Espera!!! Então vais deixar-nos aqui sozinhas?
- Vá lá Isabel!! Somos assim tão má companhia? Perguntou uma.
- Ou já tens companhia melhor? Retorquiu outra.
Ela lá fez um sorriso amarelo e deu a desculpa que tínhamos escolhido mal o dia porque estava com dor de cabeça.
Depois de ter subido para o quarto, ficámos novamente com o semblante carregado, olhámo-nos em silêncio.
Tínhamos mesmo de colocar o plano de emergência em curso.
Quando o dia amanheceu, arrumámos as coisas e em silêncio tomámos o pequeno-almoço.
A campainha tocou e Isabel gritou para a sala:
- Podem abrir?
Abrimos a porta, claro, já estávamos há espera.
O médico entrou junto com dois enfermeiros, a ambulância aguardava parada à porta pela sua nova paciente.
Indicámos o quarto onde estava Isabel.
Quando saíram, ela ía aos gritos, com os braços imobilizados por correias e agarrada pelos dois enfermeiros.
Estávamos perfiladas à porta da rua, ela olhou-nos nos olhos e suplicou que a ajudássemos, todas baixámos a cabeça.
Ela saiu a chamar carrascos aos enfermeiros e a nós.
Abraçámo-nos, as lágrimas molhavam os nossos rostos, doía muito mas sabíamos ter tomado a decisão certa.


Carla Santos Ramada
06 Fevereiro 2016

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

As Palavras do Dia – As aventuras e desventuras dos habitantes do Souto



Rosa era uma mulher ainda jovem mas já com uma carga demasiado pesada imposta pela vida.
Uso sempre o mesmo vestido, alegre e bem-disposto.
Pouco decotado, nem muito curto, nem muito comprido.
O meu vestido é aquilo que eu sou.
Posso aparecer aos olhos dos outros, vestida de várias formas, mas a minha pele, embora gasta pelo tempo, será sempre a mesma.
Esse é o meu verdadeiro vestido.
Rosa tinha uma amiga, a Clarinda.
Andou perdida por campos de malmequeres e margaridas, mas nada de trevos.
- Ai meus Deus, ajuda-me a encontrar um trevo - caiu….
Ao levantar-se só viu trevos á sua volta, andavam e falavam uma linguagem estranha.
Ela só queria um trevo e agora estava presa no mundo dos trevos.
Clarinda acordou, era um pesadelo.
Já no trabalho….
Via passar sombras no corredor e ouviam-se portas a ranger.
Como o chefe tinha falecido, com certeza só podia ser a alma penada dele que voltava durante a noite….
Decidiu não ficar até tarde, ao passar pela sala do chefe ouviu barulho – A alma penada era a secretária a trabalhar com o novo chefe.
De volta a casa e no aconchego da sua cama, perde-se nos seus pensamentos.
Queria tanto conseguir ver o que se passa dentro desse teu peito e da tua cabeça meu amor.
Porque não me tratas como antes? Porque já não sinto o teu corpo estremecer quando me aconchego em ti?
Ai como eu queria perceber ….
Mas não posso, não sou cirurgião.
Rosa a amiga também tinha o costume de viajar nos seus devaneios amorosos, tinha perdido o namorado num acidente de viação.
Quero ir ter contigo, furar o tempo….
Quero colocar no GPS as coordenadas que me levam a ti
Ou então desfolhar um mapa e descobrir um percurso que me leve para esse local secreto, onde te encontras.
Também posso ir ter contigo por tele-transporte….
Não importa como, a minha alma só quer ir para junto da tua.
A paciente entra decidida no consultório e vai gesticulando para o médico, quando este a interrompe:
- Mas menina Rosa não me pode pedir isso, não lhe posso trocar o coração.
- Como não doutor!!!  Você não é cirurgião???
A dúvida persiste, serei eu capaz de me libertar dessa fragância que teimo em trazer colada à pele?
Não consigo usar outro perfume, que não o teu – aquele que usavas antes de partires para outra vida.
Amanhã será outro dia e outra tentativa….
E quando algum homem se mostrava interessado levava logo um cartão vermelho.
Querias ser lenha para manter a fogueira do meu coração acesa, mas esse é um privilégio que não te posso dar.
Não existe calor que consiga derreter o gelo que existe em mim.
Mas porque raio todos vinham ter com ela!!!
Já não bastava passar o dia a ouvir as lamentações dos doentes na recepção de um consultório, ainda passava o tempo livre a ouvir os queixumes dos amigos, da família, dos vizinhos…
Tinha de acabar com aquilo.
Despediu-se e ficou a definhar fechada em casa.
Olhava o mar revolto sentada na areia, uma gaivota veio pousar a meus pés.
Não saiu mais do meu lado, ia emitindo sons, como se estivesse a falar comigo.
Senti-me em paz, percebi o que aquela ave queria dizer.
Deixei o fio com a tua foto na areia e entrei no mar – Fui ter contigo.
Foi salva a tempo pelas amigas, que visto o seu estado depressivo tiveram que tomar medidas.
Estávamos junto da ambulância, ela olhou-nos, suplicou que a ajudássemos, todas baixámos a cabeça.
- Traidoras!!!
Abraçámo-nos, as lágrimas molhavam os nossos rostos, doía muito mas sabíamos ter tomado a decisão certa, ela tinha de deixar cair aquela parede de betão que criara entre si e o mundo.
Viviam numa aldeia pequena em que a maioria vivia do mar, a família Sousa era uma dessas famílias.
Sempre que Maria lá ao longe, via regressar um barco da faina chorava.
Sentia-se agradecida por o mar lhe devolver o marido.
Mas quando o filho também quis ir, ela remou contra ventos e marés para o impedir.
Sem o marido ela sabe que sobreviveria, mas sem o filho, morreria lentamente.
Ana, uma das filhas adolescente de Maria, queria bem mais do que a pesca.
Queria tanto que ele me escolhesse para ir com ele ao baile.
Mas que nervos, já nem consigo dormir direito.
Sou uma miúda parva, sem estilo e caixa de óculos, nenhum rapaz vai reparar…
Ai desculpa!!! Estou para aqui a falar, a falar contigo, o melhor é eu continuar a ler-te, meu amigo livro.
- Mãe, onde está o livro que eu comprei?
- Ãh!!! Queres o quê filha???
-Ai mãe, estás surda, o meuuuu livroooo, ouviste?
-Um que estava em cima da arca da cozinha? Não era a lista telefónica? É que eu usei para embrulhar uns ovos, para a tia levar.
- Nãooooo!!!!
Mas Clarinda também tinha os seus problemas, apesar de querer sempre socorrer os outros nas suas aflições
Estava farta de ser a coitadinha, a que não chega a lado nenhum.
Quando a irmã desapareceu, decidiu tomar o seu lugar.
Voltou para casa como a bem sucedida Valéria.
Mas depressa percebeu as consequências daquela ocupação, uma vida conjugal de violência e sofrimento. Só então percebeu a fuga da irmã.
Foi uma ocupação relâmpago aquela que fizeste ao meu indefeso coração.
Usaste uma estratégia de invasão manipuladora e senti-me uma presa na tua teia.
Mas do alto da tua arrogância, nem reparaste que o meu coração accionou defesas e passou a usar a táctica da dissimulação.
Queria ser uma Gaivota e poder voar livre pelo céu azul…
Só posso sonhar com a liberdade em sonhos (quando me permitem dormir).
Como fui burra em acreditar num homem, que me tornou sua escrava sexual.
Depois havia Clementina, ficou sozinha com um monte de dívidas do marido para pagar.
A maré de azar bateu à sua porta, Clementina não sabia o que havia de fazer à vida.
O dinheiro que ganhava já não chegava para pagar as contas.
Um dia decidiu deixar-se levar pelas ondas do mar.
Acordou num palácio árabe rodeada de criados - Afinal a maré pode mudar.
Enquanto isso, Ana continuava com as suas decisões difíceis.
Tenho os meus sentimentos feitos numa trança, entrelaçados uns nos outros.
Não entendo porque me incomoda tanto, que o meu amigo de infância tenha aquela namorada parva, armada em esperta e com aquele corpinho de sereia.
Quando os vejo, não consigo tirar os olhos dela.
Já não bastava lidar com assédio da amiga ao seu namorado, agora também tinha de levar com os avanços do namorado da prima.
O seu namorado já não podia ver lá por casa a prima mas perguntava sempre pela amiga.
Isto já não é um triângulo amoroso, isto é um quadrado ou um hexágono, suspirava Ana.
Luísa era a filha do austero Joaquim da Quinta Grande e gostava de viver à margem das leis do pai.
Está parada em frente ao templo, o corpo hirto denuncia nervosismo.
Aparece-lhe então ele, segurou-lhe as mãos e disse:
- Vamos juntos para o paraíso.
Luísa abriu os olhos sobressaltada, está sentada na cama e a luz tremeluzente, projecta na parede do quarto a sombra de uma mesquita.
Vivia a vida a sonhar acordada e sem medo de provocar o pai.
- O que faz um monte de lenha na porta de minha casa?
- O Joaquim da Quinta Branca, mandou que eu a despejasse na sua porta, meu senhor – Fez uma vénia.
- Maldito seja!!!!
Virou costas e seguiu rua abaixo com o machado na mão.
- Não quero ficar a dever nada a essa gente, nem que morra de frio.
Na verdade tinha sido ela a mandar colocar a lenha na porta do inimigo.
Todos na aldeia do Souto conheciam aquela mulher que vagueava pelas ruas da vila de Pedernim.
Quando o encerramento do ano escolar se aproximava, Emília sabia que tinha de pegar no cobertor e no cartão e fazer-se ao caminho, deixando a reconfortante sala de arrumos onde por simpatia o director da escola a deixava ficar.
Apesar de já ser rotina, era sempre um dia triste.
Estava frio, os pés, enfiados numas botas gastas e cansadas de percorrer sempre a mesmo caminho.
As pessoas passavam apressadas, nem viam a sua figura miserável a mendigar um prato de comida.
Mesmo assim, quem olhasse com olhos de ver, veria um rosto envelhecido, mas um brilho de esperança no olhar.
O tio António vivia amargurado, com a perda precose da sua esposa.
Era novo e achava que tinha muito, muito tempo….
Quando percebi que o tempo estava a esgotar-se, falei com ele de mansinho e pedi mais tempo.
Mas não adiantou, ele foi surdo aos meus apelos e ela partiu, sem que eu tivesse a coragem de lhe dizer o quanto ela significava para mim.
E o seu irmão também não tivera melhor sorte.
Joaquim Trevo D’Assunção era um homem apaixonado pela boa comida, pela boa cama, gostava de saborear os prazeres da vida.
Passou a vida entre quartos de motel e festas luxuosas.
Mas quando os seus pés começaram a tornar-se pesados e o seu cabelo ficou da cor da neve….
 Como pudera ser tão estúpido!!!
O Zé Tó era um rapaz impertinente e casmurro e por causa disso também sofria do mal de amor.
Que angústia não saber de ti, mudaste de número?
Queria dizer-te que sinto a tua falta, que fui um estúpido.
Nunca mais te ter nos meus braços doí.
Viver sem ti é o cabo das tormentas, não sei se vou aguentar!
Escreveu na parede da antiga casa, na esperança que ela lá voltasse.
Mas Margarida era das poucas moças da aldeia que se podia dizer tinha sorte ao amor.
Entraram os dois sôfregos para dentro do elevador.
Estão com pressa, pois o amor não tem hora marcada.
Quando carregam no botão para parar o elevador, o mesmo dá um solavanco que os manda ao chão e ouvem um estrondo
O cabo do elevador partiu.
Era muito desenrascada mas quando a futura sogra a chamou a casa, ficou sem jeito.
Quando vi a prenda da minha futura sogra, fiquei com um nó na garganta.
Sorri, agradeci a simpatia, mas não consegui dizer mais nada.
Não lhe podia dizer que eu não sabia estrelar um ovo sequer e que quem iria usar aquele lindo trem de cozinha, era o seu querido filho.
Mas a sua sorte durou pouco e também ela foi assolada pelos males do coração e só descobriu isso quando fugiu com ele até à capital
As lágrimas escorriam-lhe pela face, ficou fora de si, sentia raiva, não conseguia ficar com alguém assim, sentia-se usada por um ser humano desprezível, afinal ele era casado.
Deambulou pelas ruas da cidade das sete colinas até de madrugada, o sol nascia no horizonte mas ela sentia-se na escuridão.
Ainda falta falar da Constança, mulher independente e resolvida que trabalha num escritório na vila.
Deixou as chaves dentro do carro, chegou tarde ao trabalho e foi dispensada. Saiu disparada e foi comprar uma ferradura para afastar o mau-olhado. Já na loja deu de caras com a vizinha com uma boneca igual a si cravada de agulhas - desmaiou.
Mas ela escondia um segredo devastador que ninguém sabia.
Já não podia ser mais criança, já não sabia brincar.
A inocência de criança há muito que o padrasto lhe roubou.
Queria muito controlar estes impulsos agressivos que me invadem de vez em quando. Mas não sou domador e o meu corpo é que acaba castigado.
Luísa continuava com os seus devaneios, ora sonhava que tinha sido resgatada por uma equipa de intervenção, ora sonhava que se tinha transformado num mutante, ou então via coisas estranhas nas paredes, enfim imaginação não lhe faltava, nem tempo.
Quando foi resgatada pela equipa Alfa dos corpos de intervenção, estava desidratada e apática,  tinha a marca de uma ferradura cravada no peito, como os animais.
Quando lhe perguntaram como se chamava disse:
-1127.
Não sabia o que tinha aquele medicamento de tão poderoso, que lhe transformara a vida.
Curou-se da maldita doença, mas ficou condenado à clausura do quarto.
Não poderia sair à rua com uma cabeça de humano num corpo de bicho.
Só queria ficar outra vez doente, para o medicamento reverter o seu estado.
Não percebia o significado daquele quadrado na parede da casa que tinha comprado.
O seu instinto dizia-lhe que por detrás daquela parede existia alguma coisa.
Um dia ganhou coragem e colocou as mãos dentro daquele desenho, a parede moveu-se e encontrou um mundo subterrâneo habitado por Trolls.
Era um facto, estavam presos entre quatro paredes.
- Não me dizes como vamos sair daqui? Diz-me?
-Pára com isso!!! É isso que ele quer, levar-nos á loucura. Tenta acalmar-te.
- Não consigo, desculpa…  espetou-lhe um garfo na garganta.
Ia tentar fugir, quando o raptor estivesse distraído com o namorado.
Tinha terminado o turno no restaurante do hotel, dirigiu-se ao carro em passo apressado, a noite ia longa.
Ao abrir a porta do carro caiu-lhe aos pés um corpo inanimado.
Arregalou os olhos, era a moça da recepção.
Isto eram só alguns devaneios da rapariga, bem mas ainda não conheceram a aventureira e altruísta Natália, uma mulher solitária que vive para os outros.
Ainda o trem de aterragem não tinha tocado o solo e já Natália estava a tirar o sinto de segurança.
O coração a saltar-lhe pela boca, suores frios a escorrer-lhe pela face.
Finalmente iria conhecer o menino Queniano que durante anos apadrinhou, á distância, agora vinha buscá-lo para junto de si.
O desvairado do Zé Tó que se meteu em sarilhos ao andar de namoro com a filha da dona de tudo quanto era loja na vila.
O plano de fuga tinha de ser abortado, o carro que iria estar à espera deles tinha-se despenhado numa ravina – é preciso ter azar.
- Não podemos ficar aqui, os meus pais, não tarda estão aí.
Olharam os dois na mesma direcção e correram para um trator parado ao fundo da rua.
Por falar em tratores, a rapariga até tinha uma relação muito estranha com a máquina mas valia tudo em nome do amor.
As aulas práticas eram dadas no hangar, ao lado de um velhinho trator. Apesar de nutrir simpatia pela máquina, na hora de subir para ela e sair para o campo provocava sempre em mim um reboliço interior e a minha barriga começava a fazer um barulho pior que um trator – gozo geral na turma.
E também tinha outra paixão, os óculos de sol.
Nem que eu vá para lá do trópico de Câncer, um sítio longínquo, onde só exista escuridão, terei sempre de levar os meus óculos de sol.
São a minha máscara de beleza, a minha protecção contra olhares indiscretos e contra os malditos pés-de-galinha que teimam em aparecer.
Tinha mesmo de falar do Ti Zé Manel e do Ti António Couto, andavam sempre às turras um com o outro e tudo servia para arranjar sarilhos.
-Ai vizinho!!! Ajude-me que o seu cão mordeu-me.
-Ó vizinho!!! É surdo???
- Jáfoste!!! Jáfoste!!!
- Mas você está a gozar comigo?? O seu cão acabou de me morder e você ainda brinca com a situação?
- Ai não é nada disso homem, tenha calma .
– Jáfoste, senta.
Na aldeia ficou tudo de boca aberta quando se descobriu que a Amélia era filha do Quim da venda, e tudo se descobriu quando a rapariga foi numa viagem de estudo ao Porto.
- Bom dia
- Bom dia, o que deseja?
- Um café e uma trança.
O empregado ficou imóvel.
- Percebeu o que eu disse???
- Ãh, desculpe senhora.
- E a trança!!!
O empregado de costas para a máquina do café, limpou uma lágrima, tinha reconhecido o sinal no pescoço da cliente, era a sua filha desaparecida há anos.
Em terras pequenas parece que a devoção e a crença religiosa é sempre vivida mais intensamente, nesta aldeia não era diferente.
As beatas rezavam uma ladainha difícil de perceber.
Uma ergue-se do chão de pedra, com os joelhos já quase em ferida e de braços abertos:
- Em nome de Deus, peço-vos que trazeis para a casa do senhor todas as pessoas, algo terrível vai acontecer antes do amanhecer.
O Zé Tó correu - foi buscar comida.
Mas também existiam momentos lúdicos e de diversão, um desses momentos era a peça de teatro apresentada na festa de Natal da vila pelos meninos das aldeias, era um dos poucos acontecimentos do ano.
- Ouça, enviar para a prisão pode não ser a melhor solução. Poderia haver um juiz de amor, ou seja, suas sentenças seriam transformadas em actos de amor, porque amor gera amor.
- O que está a dizer doutora? Se matar o marido de alguém, chego lá e por amor, fico com a mulher dele, é isso??
- Pouco barulho na sala, vai entrar o senhor juiz.
O juiz entra na sala e todos se levantam, três marteladas na mesa:
- O réu como se chama? Disse olhando o papel.
- Ãh, quem, eu??? Bateu com a mão no peito, meio atrapalhado.
- À pois claro… eu – Fernando José da Rocha Calhau, um seu criado.
O Juiz Rocha Calhau emudeceu.
Outra peça apresentada pelos meninos do primeiro ano.
Trópico de Jesus Assunção, assim se chamava o menino novo da sala.
Já era a terceira vez que mudava de escola por causa de nome tão invulgar.
O menino já cansado de repetir a mesma história “ a minha mãe é professora de Geografia …” disse chamar-se Feliz, afinal era tudo o que ele queria ser.
Eram estes os momentos em que aquelas gentes paravam o seu trabalho e rumavam à vila para verem os seus pequenos.
A Ana continuava com os dramas de amor, ou (desa)amor.
- Mãezinha, estou a ficar desesperada, o António é o amor da minha vida, mas começo a achar que ele não vai largar a mulher nunca.
- Olha se estás com essa dúvida, mata ele na tua cabeça e ele murchará no teu coração.
O Filipe era o miúdo estranho, introvertido e de poucas falas, ninguém percebia muito bem as suas atitudes.
Sempre que passava por aquela montra, ficava absorto nos seus pensamentos e imaginava-se com aquele vestido verde-esmeralda.
Voltava à dura realidade com as gargalhadas dos amigos e de cabeça baixa, continuava o seu caminho.
Nunca poderia usar aquele vestido, não enquanto vivesse num corpo de homem.
O irmão Tiago, mais velho também não tinha muita sorte, sempre a saltar de emprego em emprego e a acumular dívidas.
- Droga de trabalho!
- Droga de família!
- Droga de bancos!
-Droga de transportes!
Farto de tanta droga, espetou a agulha na veia e esqueceu-se da droga de vida que tinha.
A Rosa depois de sair da clínica de repouso onde esteve longos meses, decidiu emitir um importante comunicado à sua pessoa.
Aviso à navegação:
Por ordem do coração, o cérebro aprovou a lei nº1 de 2017, que decreta o encerramento por tempo indeterminado de sentimentos de apego ao próximo, como sejam a amizade e o amor.
Foi a mensagem que gravou na mente, quando saiu da casa que o acolhia há anos demais.
Passou a dedicar-se à escrita e resolveu escrever sobre a sua aldeia e as suas gentes tão peculiares.

Carla Santos Ramada
Palavras do Dia – Concurso Escambanautas

Janeiro 2017

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

O impossível não existe

O dia corre como todos os outros, corre devagar, sem pressa de acabar.
Eu continuo em busca de alguma coisa para comer, os meus dias correm assim, sinto-me velho, cansado, vazio de tudo.
Não preciso, nunca precisei de muita coisa para me sentir feliz, mas viver assim, como se não existisse, na rua, sem casa, sem trabalho, sem dinheiro é duro, muito duro.
Mas somos animais de hábitos e já lá vão muitos anos desde o primeiro dia em que passei a minha primeira noite na rua.
Já lá vão dezasseis anos de muitas noites a dormir em cima de um cartão, a comer os restos de comida que fica amontoada nos caixotes do lixo.
Não costumo ser de grandes nostalgias, (nem me posso dar a esse luxo) mas não sei se é de estar a ficar velho e rezingão dou comigo a pensar nestas coisas.
Quando ingressei nesta vida de vadio (como dizem as pessoas ditas normais), achava que não ia aguentar muito tempo, não estava habituado a sentir frio e não me poder aquecer, a ter fome e ter de esperar até encontrar comida ou alguma alma bondosa que me desse umas moedas. Parava a observar a vida das pessoas que por mim passavam e imaginava para onde iriam, “ aquela vai com pressa e com um saco de compras na mão, deve ir a correr para casa ter com o marido e os filhos.” e depois olhava para outro lado e “ lá vai um jovem todo aperaltado, deve ir ter com a namorada.”
Passava os dias a percorrer as mesmas ruas da baixa Lisboeta mas terminava sempre a olhar o rio no terreiro do paço.
Nessa altura ficava por ali a ver o pôr-do-sol dia após dia e a sonhar o impossível, que me apaixonava e conseguia ter uma família, aquela que um dia tinha perdido.
Um dia o impossível aconteceu, apaixonei-me.
Todos os dias para mim resumiam-se aquele momento em que ficava ali a olhar o rio e a esperar que ela aparecesse, esbelta, de pele morena e olhos verdejantes.
E ela aparecia, olhava-me nos olhos e a cada dia que passava os nossos olhos foram-se demorando cada vez mais um no outro e nem o meu ar já meio envelhecido, sujo  e esfarrapado a impediam de se aproximar de mim.
Passaram-se dias, semanas, meses neste estado de enamoramento.
Um dia ela disse que queria ficar comigo e que ia arranjar uma maneira de ficarmos juntos.
Nesse momento tudo desabou, ficou pior do que já estava, quem era eu para sujeitar aquela rapariga tão linda, com um futuro brilhante pela frente a deixar tudo para ficar com um sem abrigo?
Ela estava a acabar o curso, os pais com certeza que ambicionavam mais para ela do que ficar com um homem mais velho e que vivia na rua.
Por outro lado eu que estava cada vez a ver pior, não tinha como ir a um médico mas sentia que cada vez via menos.
Não era possível viver aquele amor.
Um dia, o primeiro desde há muito tempo, fui mais cedo que o costume ao terreiro do paço e deixei em cima do muro com uma pedra em cima uma carta.
Era para ela, consegui encontrar um pedaço de papel e uma caneta no caixote do lixo e descobri que ainda sabia escrever.
Nessa mesma noite, decidi desaparecer dali, não mais voltei à baixa de Lisboa, a minha cidade, a minha casa.
Agora velho e praticamente cego, continuo a gostar de olhar o rio, mas desta vez em Coimbra.
Como sempre fui um animal de hábitos, continuo a ser invisível a quem passa mas a observar todos os que por mim passam.
Muitos deles já conheço, porque todos tem rotinas e outros são meros transeuntes que passam, simplesmente passam, sem nada me acrescentar.

Sei que já não consigo ver direito, vejo pouco mais que sombras mas senti um sobressalto dentro do peito (por momentos pensei que estava a ter algum enfarte) mas os meus olhos, por baixo dos óculos escuros gastos pelo tempo viram-na claramente, esbelta, de pele morena e olhos verdejantes…..

Carla Santos Ramada
07 Janeiro de 2016