quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Até quando a ilusão …



Foram tantos e tantos anos de momentos felizes….
Agora sobrava um calo na palma da mão, nada mais. Como se consegue andar uma imensidão de tempo iludida?? Como??
Nem aquele pobre calo devia existir, não queria nada, mas mesmo nada que lhe fizesse lembrar que um dia fora casada, partilhara a vida com alguém, fora feliz… mas como se consegue ser feliz se não se tem vida própria, não se faz o que realmente se gosta, não se diz o que se pensa??
Só percebi isso muito tarde…. tarde demais!!
Foram vinte anos de maus tratos psicológicos, todos os dias sem excepção ouvia “não vales mesmo nada” ou “se não fosse eu, onde é que tu andavas, para aí a vender o corpo na rua”.
Até me conseguiu roubar o sonho de ser mãe “ eu de ti não quero filhos, ainda saem à mãe e depois estou feito, já tenho de sustentar uma…”
Aquele malvado, roubou-me tudo, a minha juventude, a minha alegria, os meus sonhos.
Até da minha família me foi afastando.
Todos os fins-de-semana havia desculpas para não os ir ver, claro que sozinha estava fora de questão, logo eu também tinha de arranjar desculpas quando a minha irmã mais nova, a casula da família me interpelava – Mas se ele não pode vir porque não vens tu?
Porquê?? Seria tão mais fácil contar-lhe a verdade “ porque não posso, o meu marido não deixa” e já agora aproveitava para lhe dizer também que menti, quando disse que tinha tirado a carta de condução….
Mas a vergonha que sentia era maior que tudo, isso e o medo do que ele podia fazer se soubesse que eu tinha andado a falar da nossa vida com alguém “ o que se passa aqui dentro desta casa, morre aqui!! Entendeste ou precisas que te faça um desenho!!! “
Não, não precisava de nenhum desenho….
Durante todo aquele tempo ele foi deixando claro como as coisas funcionavam.
Quando chegava mais cedo do trabalho, me vinha dar um beijo à cozinha e perguntar pela janta, dizia “ depois de jantar vamos ao café ali do Zé Carlos beber qualquer coisa, podes escolher” era suficiente para eu saber o que me esperava depois da ida ao café….
Mandava-me para a cama, “ caminha Maria, vai-te lá aprontar que eu já lá vou ter”.
O que se seguia não era amor, não era prazer, era um suplício.
Aquela frase ainda faz eco na minha cabeça quando a deito na almofada “ Abre lá as pernas que aqui o teu zézinho está com saudades”.
Um dia descobri que estava grávida, foram dias verdadeiramente insuportáveis os que passei, era o meu sonho, um filho, era uma bênção.
As semanas iam passando e eu andava no dilema de conto ou não conto, se calhar se eu lhe disser ele vai cair em si e ficar feliz e tudo vai ser diferente.
Depois era eu que caía em mim, “ ele nunca vai mudar e não vai mudar de ideias, a solução é fugires e ter essa criança bem longe.”
Não podia fugir e ficar com uma criança nos braços e sem emprego, o que pensariam os vizinhos e a minha família?
Quinze dias depois ele descobre o teste que eu tinha feito e tinha escondido na minha gaveta da roupa.
Veio ter comigo à cozinha com aquilo na mão “ Isto é o que eu penso?? “
Respondi afirmativamente com a cabeça, não consegui falar.
Deu meia volta e resmungou “ isso amanhã resolve-se”.
Foi o pior dia da minha vida, fez-me entrar no carro de manhã cedo e levou-me a um consultório, não poderei dizer “ consultório médico “ se é que me entendem….
Mas aos trinta e nove anos e quando já nada importava para mim, vivia sem viver, descubro que estou novamente grávida.
Foi a luz ao fundo do túnel, a força que precisava, não ia perder outra vez a chance que o destino me estava a dar para ser feliz, para realizar o sonho de ser mãe.
Não ia cometer os mesmos erros, fiz o teste e deitei-o fora. Nesse mesmo dia ganhei coragem e liguei à mana casula, precisava de ajuda e tinha a pessoa certa para isso.
Nessa tarde ela veio buscar-me daquela prisão em que vivi vinte anos, sem ter cometido nenhum crime.
Não trouxe, não quis trazer absolutamente nada, nem a roupa….
Uma vida nova estava a começar dentro de mim, ainda ia a tempo de reparar o meu coração e recuperar a minha alma, para isso tinha de me desfazer de todas as memórias da minha vida passada, incluindo aquele maldito calo no dedo anelar.


Uma homenagem a todas as mulheres vítimas de violência.
Nunca é tarde para descobrir um novo caminho.


Carla Santos Ramada
Janeiro 2016

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