terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

O impossível não existe

O dia corre como todos os outros, corre devagar, sem pressa de acabar.
Eu continuo em busca de alguma coisa para comer, os meus dias correm assim, sinto-me velho, cansado, vazio de tudo.
Não preciso, nunca precisei de muita coisa para me sentir feliz, mas viver assim, como se não existisse, na rua, sem casa, sem trabalho, sem dinheiro é duro, muito duro.
Mas somos animais de hábitos e já lá vão muitos anos desde o primeiro dia em que passei a minha primeira noite na rua.
Já lá vão dezasseis anos de muitas noites a dormir em cima de um cartão, a comer os restos de comida que fica amontoada nos caixotes do lixo.
Não costumo ser de grandes nostalgias, (nem me posso dar a esse luxo) mas não sei se é de estar a ficar velho e rezingão dou comigo a pensar nestas coisas.
Quando ingressei nesta vida de vadio (como dizem as pessoas ditas normais), achava que não ia aguentar muito tempo, não estava habituado a sentir frio e não me poder aquecer, a ter fome e ter de esperar até encontrar comida ou alguma alma bondosa que me desse umas moedas. Parava a observar a vida das pessoas que por mim passavam e imaginava para onde iriam, “ aquela vai com pressa e com um saco de compras na mão, deve ir a correr para casa ter com o marido e os filhos.” e depois olhava para outro lado e “ lá vai um jovem todo aperaltado, deve ir ter com a namorada.”
Passava os dias a percorrer as mesmas ruas da baixa Lisboeta mas terminava sempre a olhar o rio no terreiro do paço.
Nessa altura ficava por ali a ver o pôr-do-sol dia após dia e a sonhar o impossível, que me apaixonava e conseguia ter uma família, aquela que um dia tinha perdido.
Um dia o impossível aconteceu, apaixonei-me.
Todos os dias para mim resumiam-se aquele momento em que ficava ali a olhar o rio e a esperar que ela aparecesse, esbelta, de pele morena e olhos verdejantes.
E ela aparecia, olhava-me nos olhos e a cada dia que passava os nossos olhos foram-se demorando cada vez mais um no outro e nem o meu ar já meio envelhecido, sujo  e esfarrapado a impediam de se aproximar de mim.
Passaram-se dias, semanas, meses neste estado de enamoramento.
Um dia ela disse que queria ficar comigo e que ia arranjar uma maneira de ficarmos juntos.
Nesse momento tudo desabou, ficou pior do que já estava, quem era eu para sujeitar aquela rapariga tão linda, com um futuro brilhante pela frente a deixar tudo para ficar com um sem abrigo?
Ela estava a acabar o curso, os pais com certeza que ambicionavam mais para ela do que ficar com um homem mais velho e que vivia na rua.
Por outro lado eu que estava cada vez a ver pior, não tinha como ir a um médico mas sentia que cada vez via menos.
Não era possível viver aquele amor.
Um dia, o primeiro desde há muito tempo, fui mais cedo que o costume ao terreiro do paço e deixei em cima do muro com uma pedra em cima uma carta.
Era para ela, consegui encontrar um pedaço de papel e uma caneta no caixote do lixo e descobri que ainda sabia escrever.
Nessa mesma noite, decidi desaparecer dali, não mais voltei à baixa de Lisboa, a minha cidade, a minha casa.
Agora velho e praticamente cego, continuo a gostar de olhar o rio, mas desta vez em Coimbra.
Como sempre fui um animal de hábitos, continuo a ser invisível a quem passa mas a observar todos os que por mim passam.
Muitos deles já conheço, porque todos tem rotinas e outros são meros transeuntes que passam, simplesmente passam, sem nada me acrescentar.

Sei que já não consigo ver direito, vejo pouco mais que sombras mas senti um sobressalto dentro do peito (por momentos pensei que estava a ter algum enfarte) mas os meus olhos, por baixo dos óculos escuros gastos pelo tempo viram-na claramente, esbelta, de pele morena e olhos verdejantes…..

Carla Santos Ramada
07 Janeiro de 2016

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