O dia corre como todos os outros, corre
devagar, sem pressa de acabar.
Eu continuo em busca de alguma coisa
para comer, os meus dias correm assim, sinto-me velho, cansado, vazio de tudo.
Não preciso, nunca precisei de muita
coisa para me sentir feliz, mas viver assim, como se não existisse, na rua, sem
casa, sem trabalho, sem dinheiro é duro, muito duro.
Mas somos animais de hábitos e já lá vão
muitos anos desde o primeiro dia em que passei a minha primeira noite na rua.
Já lá vão dezasseis anos de muitas noites
a dormir em cima de um cartão, a comer os restos de comida que fica amontoada
nos caixotes do lixo.
Não costumo ser de grandes nostalgias, (nem
me posso dar a esse luxo) mas não sei se é de estar a ficar velho e rezingão
dou comigo a pensar nestas coisas.
Quando ingressei nesta vida de vadio
(como dizem as pessoas ditas normais), achava que não ia aguentar muito tempo,
não estava habituado a sentir frio e não me poder aquecer, a ter fome e ter de
esperar até encontrar comida ou alguma alma bondosa que me desse umas moedas.
Parava a observar a vida das pessoas que por mim passavam e imaginava para onde
iriam, “ aquela vai com pressa e com um saco de compras na mão, deve ir a
correr para casa ter com o marido e os filhos.” e depois olhava para outro lado
e “ lá vai um jovem todo aperaltado, deve ir ter com a namorada.”
Passava os dias a percorrer as mesmas
ruas da baixa Lisboeta mas terminava sempre a olhar o rio no terreiro do paço.
Nessa altura ficava por ali a ver o pôr-do-sol
dia após dia e a sonhar o impossível, que me apaixonava e conseguia ter uma
família, aquela que um dia tinha perdido.
Um dia o impossível aconteceu,
apaixonei-me.
Todos os dias para mim resumiam-se
aquele momento em que ficava ali a olhar o rio e a esperar que ela aparecesse,
esbelta, de pele morena e olhos verdejantes.
E ela aparecia, olhava-me nos olhos e a
cada dia que passava os nossos olhos foram-se demorando cada vez mais um no
outro e nem o meu ar já meio envelhecido, sujo
e esfarrapado a impediam de se aproximar de mim.
Passaram-se dias, semanas, meses neste
estado de enamoramento.
Um dia ela disse que queria ficar comigo
e que ia arranjar uma maneira de ficarmos juntos.
Nesse momento tudo desabou, ficou pior
do que já estava, quem era eu para sujeitar aquela rapariga tão linda, com um
futuro brilhante pela frente a deixar tudo para ficar com um sem abrigo?
Ela estava a acabar o curso, os pais com
certeza que ambicionavam mais para ela do que ficar com um homem mais velho e
que vivia na rua.
Por outro lado eu que estava cada vez a
ver pior, não tinha como ir a um médico mas sentia que cada vez via menos.
Não era possível viver aquele amor.
Um dia, o primeiro desde há muito tempo,
fui mais cedo que o costume ao terreiro do paço e deixei em cima do muro com
uma pedra em cima uma carta.
Era para ela, consegui encontrar um
pedaço de papel e uma caneta no caixote do lixo e descobri que ainda sabia
escrever.
Nessa mesma noite, decidi desaparecer
dali, não mais voltei à baixa de Lisboa, a minha cidade, a minha casa.
Agora velho e praticamente cego, continuo
a gostar de olhar o rio, mas desta vez em Coimbra.
Como sempre fui um animal de hábitos,
continuo a ser invisível a quem passa mas a observar todos os que por mim
passam.
Muitos deles já conheço, porque todos
tem rotinas e outros são meros transeuntes que passam, simplesmente passam, sem
nada me acrescentar.
Sei que já não consigo ver direito, vejo
pouco mais que sombras mas senti um sobressalto dentro do peito (por momentos
pensei que estava a ter algum enfarte) mas os meus olhos, por baixo dos óculos
escuros gastos pelo tempo viram-na claramente, esbelta, de pele morena e olhos
verdejantes…..
Carla Santos Ramada
07 Janeiro de 2016
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