quarta-feira, 3 de maio de 2017

Esvaziar Sentimentos


Tinha de entrar. O coração a galopar no peito, as pernas bambas. Parecia que ali o ar era diferente, mais denso.
Cheirava a terra húmida, mas tinha de ir por ali.
Enchi os pulmões desse ar misterioso, continuei.
A porta pesada e enferrujada fez um rugido tenebroso, fechou-se.
Hoje resolvi esvaziar todas as gavetas da minha cómoda, aquela que fechei a sete chaves na minha cabeça, mas que de vez em quando vem instalar-se no meu coração.
Tenho de fazer este esvaziamento o mais depressa possível, para conseguir voltar a arrumar as coisas nos seus devidos lugares.
Fechei os olhos, respirei fundo, vamos então à primeira gaveta.
Abri-a com muito cuidado, ou seria medo?
O cheiro que dela emanou, não era a pó nem a mofo, era a perfume, do meu primeiro grande amor.
Abri os olhos molhados dessa água perfumada, as minhas mãos encontraram um pedaço dele, gasto pelo tempo, o lenço preto que trazia sempre a estrangular-lhe o pescoço.
Retirei o objecto, como se de uma coisa repugnante se tratasse e fechei a gaveta, os meus olhos continuavam molhados, limpei-os com o lenço e joguei-o no chão.
Respirei novamente aquele ar pesado, demorei-me uns minutos na segunda gaveta e abri-a num impulso, queria sair dali, fugir, esconder-me, mas sabia que isso seria condenar-me a uma morte lenta.
Fiquei de olhos fixos no vazio e empoeirado compartimento, nada, nesta não restava nada, não fosse o meu coração entrar em taquicardia e ter de se afastar, para perceber que mesmo vazia aquela gaveta estava cheia.
As memórias assaltaram os meus pensamentos, em breves segundos desfilaram pela minha cabeça as imagens de todos aqueles momentos de brincadeira, de cumplicidade e de inocência que passei com o amigo de escola que partiu muito cedo, sim és tu.
Não parava de me perguntar, o que teríamos vivido se a tua vida não tivesse terminado de maneira tão trágica, se eu não te tivesse deixado ir sozinho naquela tarde para o rio.
As minhas mãos continuavam agarradas aos puxadores, tinha de a fechar, tinha de conseguir viver sem esse peso, esse remorso.
Fechei-a, com um grito de libertação.
Faltava a última gaveta, recompus-me, limpei os olhos desfigurados de tanta dor, ajoelhei-me no chão e mentalmente, contei até três.
Abri-a, devagar, quase sem dar por isso, a um canto jazia uma foto amarelecida.
Com a mão trémula, agarrei-a e os meus olhos teimosos não me obedeceram, as lágrimas que corriam pelo meu rosto eram serenas, eram lágrimas de saudades, daquela tia que me tinha criado, me tinha ensinado, me tinha mimado.
Era ela uma das grandes responsáveis por eu ser a mulher que sou hoje, mas não consegui despedir-me dela, só me restava aquela foto dela doente, prostada numa cama. Era uma pré-adolescente sem voto na matéria e certamente que os meus pais fizeram o que achavam melhor, mas esse sentimento de abandono ficou em mim.
Mas tinha de ser agora, soprei-lhe um beijo e sussurrei-lhe um obrigado, a foto voou levemente até ao chão e voltei a fechar a gaveta, lentamente.
Respirei fundo, precisava de enviar oxigénio ao meu cérebro.
Depois olhei o lenço e a foto, levei-os até ao jardim e depositei-os na terra húmida.
Joguei-lhes ácido. A velhinha cómoda, doei-a para um lar.

Podia finalmente comprar uma cómoda nova e recomeçar a enchê-la com novas recordações e novos sentimentos.

Carla Santos Ramada
Colectânea " Na minha cómoda" do GMH
Abril 2016

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