Tinha
de entrar. O coração a galopar no peito, as pernas bambas. Parecia que ali o ar
era diferente, mais denso.
Cheirava
a terra húmida, mas tinha de ir por ali.
Enchi
os pulmões desse ar misterioso, continuei.
A
porta pesada e enferrujada fez um rugido tenebroso, fechou-se.
Hoje
resolvi esvaziar todas as gavetas da minha cómoda, aquela que fechei a sete
chaves na minha cabeça, mas que de vez em quando vem instalar-se no meu
coração.
Tenho
de fazer este esvaziamento o mais depressa possível, para conseguir voltar a
arrumar as coisas nos seus devidos lugares.
Fechei
os olhos, respirei fundo, vamos então à primeira gaveta.
Abri-a
com muito cuidado, ou seria medo?
O
cheiro que dela emanou, não era a pó nem a mofo, era a perfume, do meu primeiro
grande amor.
Abri
os olhos molhados dessa água perfumada, as minhas mãos encontraram um pedaço
dele, gasto pelo tempo, o lenço preto que trazia sempre a estrangular-lhe o
pescoço.
Retirei
o objecto, como se de uma coisa repugnante se tratasse e fechei a gaveta, os
meus olhos continuavam molhados, limpei-os com o lenço e joguei-o no chão.
Respirei
novamente aquele ar pesado, demorei-me uns minutos na segunda gaveta e abri-a
num impulso, queria sair dali, fugir, esconder-me, mas sabia que isso seria condenar-me
a uma morte lenta.
Fiquei
de olhos fixos no vazio e empoeirado compartimento, nada, nesta não restava
nada, não fosse o meu coração entrar em taquicardia e ter de se afastar, para
perceber que mesmo vazia aquela gaveta estava cheia.
As
memórias assaltaram os meus pensamentos, em breves segundos desfilaram pela
minha cabeça as imagens de todos aqueles momentos de brincadeira, de
cumplicidade e de inocência que passei com o amigo de escola que partiu muito
cedo, sim és tu.
Não
parava de me perguntar, o que teríamos vivido se a tua vida não tivesse terminado
de maneira tão trágica, se eu não te tivesse deixado ir sozinho naquela tarde
para o rio.
As
minhas mãos continuavam agarradas aos puxadores, tinha de a fechar, tinha de
conseguir viver sem esse peso, esse remorso.
Fechei-a,
com um grito de libertação.
Faltava
a última gaveta, recompus-me, limpei os olhos desfigurados de tanta dor,
ajoelhei-me no chão e mentalmente, contei até três.
Abri-a,
devagar, quase sem dar por isso, a um canto jazia uma foto amarelecida.
Com
a mão trémula, agarrei-a e os meus olhos teimosos não me obedeceram, as
lágrimas que corriam pelo meu rosto eram serenas, eram lágrimas de saudades,
daquela tia que me tinha criado, me tinha ensinado, me tinha mimado.
Era
ela uma das grandes responsáveis por eu ser a mulher que sou hoje, mas não
consegui despedir-me dela, só me restava aquela foto dela doente, prostada numa
cama. Era uma pré-adolescente sem voto na matéria e certamente que os meus pais
fizeram o que achavam melhor, mas esse sentimento de abandono ficou em mim.
Mas
tinha de ser agora, soprei-lhe um beijo e sussurrei-lhe um obrigado, a foto
voou levemente até ao chão e voltei a fechar a gaveta, lentamente.
Respirei
fundo, precisava de enviar oxigénio ao meu cérebro.
Depois
olhei o lenço e a foto, levei-os até ao jardim e depositei-os na terra húmida.
Joguei-lhes
ácido. A velhinha cómoda, doei-a para um lar.
Podia
finalmente comprar uma cómoda nova e recomeçar a enchê-la com novas recordações
e novos sentimentos.
Carla Santos Ramada
Colectânea " Na minha cómoda" do GMH
Abril 2016
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