As meninas da aldeia
Quando no interior centro de Portugal uma
mulher fica grávida, não há dúvidas, o bebé vai nascer a Coimbra.
Foi o que me aconteceu (nos aconteceu),
mas passo então a contar a periclitante história da minha infância e como não
podia deixar de ser começa assim….
Era uma vez uma jovem mulher grávida que
vivia numa aldeia no interior escondido de Portugal, corria o glorioso (sem
querer fazer qualquer analogia) ano de setenta e seis.
Naquela aldeia serrana, pertencente ao
distrito de Leiria mas localizada mais perto de Coimbra o tempo corria devagar
e aquele jovem casal trabalhava como a maior parte das pessoas, numa das muitas
fábricas de lanifícios existentes no concelho.
Mas, depois do trabalho que colocava o
dinheiro em casa, ainda havia muito que fazer, calçavam as galochas e lá iam
eles para os campos semear as batatas, as couves e tudo o que era necessário
para o sustento de uma casa.
Na aldeia (nem na vila), não havia
hipermercados, supermercados ou mercearias como lhe queiram chamar, o peixeiro
passava de quinze em quinze dias e o peixe que se conseguia comer era a
sardinha porque era o mais barato.
O pão era amassado e cozido em forno de
lenha e as carnes que se comiam eram dos animais que se criavam em casa - os
porcos, as galinhas, as cabras e ovelhas.
A azáfama era sempre grande, na altura das
vindimas ou da apanha da azeitona, toda a aldeia se ajudava e havia até
máquinas que eram comunitárias como o esmagador de uvas ou a máquina da
azeitona, andavam de casa em casa e tinham sido compradas pelas pessoas da
aldeia.
Ora numa tarde soalheira de Fevereiro,
andava a senhora a semear batatas quando se sentiu mal, uma dor forte na
barriga que já começava a pesar e de repente fica toda molhada.
Assustada, chama pela mãe que também estava
por ali, sabedoria vinda da experiência de quem já tinha parido quatro vezes
(um dos quais tinha nascido morto) a mãe da mulher apressa-se a chamar o genro
e diz que a criança vai nascer.
Não poderia ainda nascer, feitas as contas
e sem ainda ter ido a um médico, a mulher entra em pânico:
- Não pode nascer ainda!!! Estou de seis
meses.
- Vamos para Coimbra, atalha o marido, vou
chamar um carro de praça (entenda-se um táxi).
Assim e passados quinze dias na maternidade
em Coimbra nasceu não uma, mas duas bebés prematuras que os médicos disseram
não sabiam se iriam resistir.
“Estão muito fracas e existem órgãos que
ainda estão em formação, mas vamos fazer o nosso melhor”. Estas foram as
palavras dos médicos, aquele jovem casal ficou de rastos.
Passada uma semana deram alta à mãe das
crianças e informaram que elas iriam ficar na incubadora, não sabiam ainda por
quanto tempo.
Foram semanas muito complicadas, todos os
dias depois do trabalho na fábrica, o pai pegava na mãe e faziam quase duas
horas pela estrada nacional de motorizada só para ir olhar as suas filhas pelo
vidro da incubadora.
Só se percebia que estavam vivas porque
pareciam um fole que ora se enche ora se esvazia, estavam com os olhitos
tapados e tubos no nariz e na boca, a pele toda enrugada. Não tinham unhas nem
sobrancelhas e muito menos cabelo.
Todos os dias vinham embora em lágrimas e
de cada vez que tinham de se despedir era como se fosse a última vez que as
viam, foram quarenta e um dias assim, neste calvário de emoções.
Mas a tormenta passou, os médicos estavam
felizes, tinha sido um caso de sucesso, as bebés podiam finalmente ir para casa
- estavam estáveis.
Os meses seguintes foram de romaria a casa
daquele casal que tinha tido duas meninas gémeas “ e são tão pequeninas, tens
de ir vê-las” era o que se comentava na aldeia.
Com o frio da serra, passaram meses
seguidos, enfiadas no quarto, com os aquecedores pedidos emprestados.
A avó costumava dizer que eram um quilo de
arroz, cabiam na palma de uma mão, tinham medo de lhes dar banho com medo que
se partissem e o banho era dado numa bacia da cozinha.
E assim foram crescendo duas meninas
alegres e bem-dispostas e sempre prontas a fazer traquinices.
As brincadeiras daquela altura eram na
rua, tudo servia para brincar, as folhas das árvores, as pedrinhas do chão….
Aos cinco anos ganharam um primo, filho de
uma irmã da mãe. Era como se fosse o irmão que não tinham e passou a ser o alvo
preferido das brincadeiras das manas.
Nas férias grandes também ganhavam uma
amiguinha, vinha da cidade grande (Lisboa, pois claro) passar as férias com os
avós e passavam tardes inteiras encavalitadas nas oliveiras a cantar as canções
novas que tinham aprendido.
Certa tarde resolveram ensinar o priminho
a jogar às escondidas e de repente quando começaram a chamar por ele, este não
aparecia.
A avó ficou em pânico pois era quem tomava
conta dos netos junto com uma tia-avó e desatou aos berros que lhe tinham
roubado o menino.
Foi a confusão naquela aldeia, onde nunca nada
acontecia, as pessoas começaram a acorrer ao cabeço, assim se chamava o sítio
onde moravam, por ficar num sítio alto em relação ao resto da aldeia.
Passadas umas horas, claro que encontraram
o pequeno atrás de uma porta da cozinha, ao ser questionado porque não
respondia, remeteu as responsabilidades para as primas “as primas disseram para
eu não responder mesmo que ouvisse chamar”, claro que depois disto tudo sobrou
para quem? – Para as primas.
Uma das brincadeiras preferidas das gémeas
era irem para o palheiro do avô apanhar ouriços-cacheiros. – Sim é verdade,
achavam um bichinho simpático e nem toda a gente conseguia apanhá-los, pois tem
de se ter alguma mestria senão eles enrolam-se e depois nada feito.
Colocavam os bichos dentro de um saco
plástico e penduravam no estendal da roupa e depois ficam ali sentadas, no chão
a ver qual dos bichos rompia o saco e caía primeiro.
Aliás estas meninas tinham uma certa queda
para os bichos e para andarem a brincar perdidas pelos campos a fora.
Outra altura em que tinham lá a amiga de
Lisboa, decidiram ir até ao recreio da escola primária. – Sim existia uma
escola primária na aldeia e naquela altura andavam lá umas vinte crianças,
neste momento já só existe o edifício velho, gasto pelo tempo.
Por entre uns tijolos que estavam
amontoados a um canto do recreio, eis que descobriram, um morcego bebé,
minúsculo, todo pelado e escorregadio.
Resolveram logo ali que tinham de levá-lo
para casa para tratar dele, qual aventureiras em busca do desconhecido, lá levaram
o morcego e colocaram-no em cima do muro de casa da avó.
Estava a escurecer e enquanto discutiam o
que um morcego comia, ouviram-se uns guinchos muito agudos e as três meninas só
tiveram tempo de baixar as cabecinhas.
Quando voltaram a levantar-se e olharam
para o muro o bichinho tinha desaparecido, ficaram muito tristes mas perceberam
que a mãe dele o tinha vindo buscar e portanto estaria bem melhor.
Numa das vezes em que a mãe as deixou ir
com o avô resineiro para o pinhal, voltaram com uma coderniz, resolveram que
tinham de ficar com ela e lá convenceram a tia a arranjar-lhes uma gaiola para
colocar a ave.
Andaram meses naquele entusiasmo, a cuidar
do bicho, mas um belo dia - morreu.
Catástrofe das catástrofes, ficaram
desoladas, choraram dias a fio e até fizeram um funeral á bichinha e tudo.
Numa outra ocasião, estavam na cozinha á
espera que a avó terminasse de fazer o caldo trigo (umas papas feitas de água
com farinha e açúcar), que elas adoravam. Elas tinham dito á avó que estavam doentes
e com dores de barriga, quando uma vizinha vai chamar ao portão.
A senhora estava a pedir à avó para deixar
ir as meninas numa novena (uma promessa feita a uma santinha em que tem de se
levar em procissão dez meninas) e que depois lhes dava o lanche, a avó disse
que tinha pena mas que estavam doentes.
Ao ouvirem isto, as pequenas saem
disparadas de traz da porta, descem as escadas a correr e a dizer que já não
estavam doentes - eram espertas as miúdas.
Assim lá foram passear e comeram as papas
na mesma quando regressaram.
Adoravam passar as tardes com os avós pois
estes contavam-lhes histórias de quando eram novos incluindo as músicas que o
avô cantava para a avó quando já noite dentro passava à sua porta, antes de ir
para casa – Antigamente não havia carros e motas eram poucas, de maneira que o
avô calcorreava um par de quilómetros para ir aos bailes na terra da avó:
Ando por aqui de
noite
Não faço mal a
ninguém
Quem estiver na
sua cama
Deixe-se estar que
está bem.
Tenho
sono de galinha
A
galinha dorme em pé
Este meu sono
menina
Causado por você
é.
Eu prendi o sol á
lua
As estrelas ao
luar
Cozi o meu coração
ao teu
Com linhas de
alinhavar.
Nas telhas do teu
telhado
Tenho um cigarro
escondido
Cala-te e não
digas nada
Que eu ando de
amores contigo.
Esta noite chove, chove
Uma chuva miudinha
Se chover na tua
cama
Anda amor vem ter
á minha.
E quando um dia o tio mais novo resolveu ensiná-las
a jogar à bola em frente de casa da avó e de repente – Ups!!! Partiu-se um
vidro!!! E toca a fugir antes que a avó apareça…
Também foi por causa desse tio, que vinha
da cidade grande, que elas na altura já na escola primária deixaram de
acreditar no Pai Natal.
Nessa noite encantada, tinham de deixar
uma meia pendurada na chaminé para o Pai Natal deixar as prendas e na manhã
seguinte era uma correria para ir espreitar o que estava nas meias, (por norma,
uns rebuçados, o famoso chapéu de chocolate, uma peça de roupa e um brinquedo).
Houve um ano em que estavam em casa dos
avós, já depois do jantar e as manas resolveram dar uma fugida até sua casa,
que ficava mesmo ao lado e não disseram nada a ninguém. Claro que ao chegarem à
cozinha apanharam o tio em flagrante a colocar as coisas nas meias - foi choro
até conseguirem adormecer.
Mas nem tudo era brincadeira e desilusões
e cedo aprenderam que a vida não era fácil.
Havia sempre muito para fazer na aldeia e
cedo começaram a ajudar os pais nas lides domésticas e no campo.
A parte que custava mais era ter de
levantar muito cedo e com muito frio para ir com os pais para a fazenda nos
dias de sementeira.
Tinham de ajudar no que a idade lhes
permitia, normalmente faziam de meninas de recados:
- Vai à mina buscar este cântaro de água à
mãe.
- Vai dar estas sacas ao tio que está no
campo de baixo.
- Traz cá o cesto da comida para dar às
pessoas.
Era isto o dia inteiro, mas a tudo as
meninas assentiam com um leve suspirar.
A parte que ambas mais gostavam era de ir
buscar água á mina pois podiam ficar ali um bocadinho a observar as rãs na
beira da água.
Outro dia cansativo era o da apanha do
milho, não gostavam mesmo nada, normalmente estava calor e tinham de vestir
mangas compridas e collants, porque andar por entre o milho, sem ser
resguardadas ficavam com os braços e as pernas cheias de comichão, de maneira
que era preferível aguentar o calor.
Mas a parte mais divertida vinha no fim do
dia, apesar de todos cansados, reuniam-se à volta do monte de espigas e
começava assim a descamisada, ou seja, tirar a camisa às maçarocas do milho.
Todos ficavam contentes e os tios, avós e primos todos cantavam canções alegres
e divertidas e apesar de nem sempre as gémeas entenderem o que se cantava
achavam piada e divertiam-se bastante.
Ó
lugar da Derreada
Não
és vila nem cidade
És
um lugar pequenino
Onde brilha a
mocidade.
Ó lugar da
Derreada
Para baixo correm
as bicas
Sempre foste e
hás-de ser
Lugar de moças
bonitas
Ao passar o vale
jestoso
Ao ramal da
Ervideira
Com a sua janela
aberta
Vê-se o alto da
Louriceira.
É verdade que era uma vida dura e sem
grandes mordomias, mas as meninas gostavam muito dos serões passados à volta da
lareira, com o pai a contar histórias de quando era rapaz novo e namoradeiro e
das canções que se tocavam nos bailaricos ao som da concertina:
O
ladrão do meio
É
bem azadinho
Para
namorar
Tem belo jeitinho
Rouba ladrão,
rouba
Se sabes roubar
Rouba uma menina
Que te saiba amar
Já cá vai roubada
Já cá vai na mão
Já cá vai ao lado
Do meu coração
O ladrão do meio
É alto demais
Por isso lhe
chamam
O espanta pardais.
Aos Domingos lá iam os quatro
encavalitados na motorizada, fazer uma dúzia de quilómetros para almoçarem com
os avós paternos, era uma viagem atribulada pela serra mas de que elas
gostavam.
Só havia um televisor grande que estava na
sala de estar e este só se ligava ao fim de semana, durante a semana era dia de
escola e não havia televisão para ninguém e ordens eram ordens - cumpriam-se
religiosamente.
E por falar em escolinha, ainda hoje no
recreio da velhinha escola primária, lá estão de guarda as enormes árvores que
as meninas plantaram num qualquer dia da árvore.
Nas tardes de inverno e quando já mais
crescidinhas, lá iam elas para os quintais e pinhais há procura da iguaria da
época, cogumelos e míscaros, estes últimos eram bem mais difíceis de encontrar
pois tinham de andar há procura debaixo das carumas dos pinheiros.- Hum !!! Mas
eram tão bons, quando a mãe fazia arroz de míscaros ou cogumelos assados na
brasa.
Depois havia a altura da vindima (essa
parte elas gostavam mais), pois entre um cacho e outro lá iam comendo umas
uvas.
Mas o que mais gostavam era mesmo de andar
atrás dos homens a ver todo aquele processo de levar o esmagador para a adega e
de ficarem sossegadinhas (para não atrapalharem) a verem esmagar as uvas, gostavam
daquele cheiro inebriante.
São tantas recordações boas…. Tudo faz parte
de um passado e de uma história que nunca será apagada.
Uma dessas meninas sou eu, que hoje virou
mulher de quarenta, mora na cidade grande – Lisboa, vai visitar a família
incluindo a mana gémea à aldeia, no interior centro de Portugal e faz questão
de contar aos filhos a sua infância e levá-los a experenciar muitas coisas que
também ela fez em pequena. E como não podia deixar de ser tornar as suas
histórias de infância eternas ao deixá-las escritas.
Carla Santos Ramada
Junho 2016
In colectânea "Décadas" da Papel D'Arroz
Uma deliciosa viagem ao passado, em muito semelhante às minhas memórias de meninice, mas que sabe sempre bem recordar. Parabéns!
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